domingo, 23 de fevereiro de 2014

Simon de Montfort. A figura do Vassalo Perfeito. História Albigeoise. Pierre des Vaux de Cernay. Eduardo L. Medeiros. «A palavra heresia (do grego hairesis, hairen, que significa escolher) acompanhou a vida da Igreja desde os inícios e, para os escritores eclesiásticos o termo designava uma doutrina contrária aos princípios da fé oficialmente declarada»

Cortesia de wikipedia

«O estudo do fenómeno conhecido como Cruzadas, é uma tarefa muitas vezes difusa, devido a toda a mística que envolve o tema, devido à recente produção literária que aborda o assunto e a filmografia que tem valorizado os épicos históricos, debruçando-se sobre os conflitos medievais entre cristãos e muçulmanos, séculos antes dos entraves contemporâneos, mostrando que o assunto ainda gera interesse e fascínio entre o público leigo. Ao observarmos este fenómeno, a partir do momento em que ocorre dentro dos domínios da Cristandade, como no episódio da cruzada albigense, percebe-se a singularidade e complexidade em buscar apreender elementos que esclareçam ou ao menos auxiliem na clarificação das motivações e personagens envolvidos num conflito desta magnitude. Para tanto, a análise da cruzada será realizada através da trajectória do líder cruzado, o conde Simon de Montfort, na medida em que, através de sua singularidade, é possível verificar elementos que transpassem a própria cruzada. Entre estes elementos é possível citar, por exemplo, o desenvolvimento de dois projectos expansionistas antagónicos entre a região norte do território conhecido hoje como França, e o reino de Aragão, na Península Ibérica.

Proponho a análise de alguns elementos pertinentes ao contexto relativo ao tema, seguido de um olhar mais aproximado da fonte documental intitulada Histoire Albigeoise, escrita pelo monge cisterciense Pierre des Vaux de Cernay. Desenvolvida no formato de crónica, entre 1213 e 1218, é o documento considerado pela historiografia contemporânea como a matriz da visão oficial do conflito. Pierre era o sobrinho de Guy, abade do mosteiro de Vaux de Cernay, no sudoeste de Paris, fundado por Simon de Neauphle em 1118 ou 1128. A Histoire Albigeoise é uma fonte escrita por um clérigo em formato de crónica como uma elegia a um vassalo real. Entender estes elementos, ou seja, as razões para a escrita da obra e para a exaltação da figura de um personagem que estava à sombra do rei tendo como pano de fundo a cruzada albigense e o contexto europeu do século XIII. Para tanto, será necessário deslocar o foco da cruzada e dos hereges apenas, e analisar figuras como o papa Inocêncio III, o rei Felipe Augusto e o rei Pedro II, o católico, numa intrincada rede de acções políticas e projectos antagónicos que auxiliaram na formação da geografia política da Europa. A realização de uma leitura que busque uma visão da obra do monge Pierre de Cernay que não contemple apenas a cruzada albigense ou as doutrinas dos hereges, é a contribuição para a historiografia. A elevação de Simon de Montfort a um papel central dentro da crónica eclesiástica de Pierre levou-nos a conectá-la à formação da proposta de unificação do reino francês, tão díspar no seu território, como a cruzada e a heresia mostraram ser. A necessidade de um modelo de vassalagem, fé católica, fidelidade ao rei e coragem, faz da Historia Albigeoise uma obra em certa medida de cunho didáctico, tanto para os habitantes do norte, quanto para os habitantes do Languedoc, que em termos culturais e sociais estavam muito mais associados ao reino de Aragão, que aos domínios de Filipe Augusto.

De acordo com a pesquisa realizada, dividimos em três capítulos principais, os quais vão tratar respectivamente: O argumento legitimador, qual seja a heresia cátara; As personagens, onde discutimos a respeito dos papéis de Filipe Augusto e Inocêncio III no conflito e a existência de um projecto da monarquia francesa apoiado pela Igreja Romana que visava expandir os territórios do norte buscando uma saída para o mar Mediterrâneo; e uma análise da figura de Simon de Montfort. Esta análise acontece em quatro pontos específicos, a descrição de sua participação na cruzada albigense, suas características físicas, cristãs, nobres e como estas características, na obra de Pierre, corroboram para nossa hipótese de criação de um Vassalo Perfeito que serviria de exemplo tanto para a os servos de um pretenso reino francês unificado, como para a Igreja. Para o primeiro ponto, o desenvolvimento das heresias no contexto europeu dos séculos XII e XIII, optamos por dois trabalhos principais: Heresias Medievais de Nachman Falbel e Reforma na Idade Média, de Brenda Bolton. Na primeira obra, Falbel traça uma síntese das principais heresias que obtiveram repercussão frente à cristandade durante período medieval, como por exemplo, os cátaros, valdenses, beguinos e pseudo-apóstolos. O autor também apresenta clérigos saídos das ordens monásticas que questionavam dogmas da doutrina cristã, como por exemplo, Pedro de Bruys, que negava a santa missa, o baptismo de crianças, a cruz enquanto símbolo tradicional do cristianismo. Além de atentar apenas para a própria descrição dos acontecimentos, é importante perceber como o autor entende os conceito. A principal contribuição de Falbel está na sua explicação para o conceito de heresia: A palavra heresia (do grego hairesis, hairen, que significa escolher) acompanhou a vida da Igreja desde os inícios e, para os escritores eclesiásticos o termo designava uma doutrina contrária aos princípios da fé oficialmente declarada.

O autor distingue as heresias ocorridas entre os séculos XII e XIII daquelas ocorridas no início do cristianismo como religião oficial no Ocidente, dizendo que estas possuíam um carácter filosófico e teológico, onde os dogmas cristãos eram submetidos ao crivo racional, enquanto as heresias da Idade Média possuíam enquanto características, [...] um cunho popular assente sobre uma nova visão ética da instituição eclesiástica e do cristianismo como religião vigente na sociedade ocidental. Quando retratar o conceito heresia, estarei à visão do autor, de que as heresias medievais mobilizavam tanto clérigos quanto camponeses e até senhores, num contexto propício para mudanças, sejam elas intelectuais, económicas ou sociais. Esta percepção está de acordo com a historiografia mais recente sobre o tema». In Eduardo Luís Medeiros, Simon de Montfort, A figura do Vassalo Perfeito, História Albigeoise, Pierre des Vaux de Cernay, Ciências Humanas, Letras e Artes, UF do Paraná, Curitiba, 2006.



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