Gnosticismo
«(…) O gnosticismo foi um movimento religioso que, nos
primeiros séculos do cristianismo, desdobrou-se numa multidão de seitas que
partilhavam uma concepção de gnose em comum, combatida e rejeitada pela Igreja.
Essas seitas acreditavam que a salvação vinha através do profundo conhecimento
de si e de Deus, que a chave para a destruição era a ignorância e, para se
chegar à perfeição, o homem deveria buscar o conhecimento (gnose). Foram várias
e ecléticas as correntes gnósticas e muitas compartilhavam a ideia de que o
mundo, a carne e a matéria que o compunham, estava irremediavelmente
corrompido e controlado por forças malignas, e que só o espírito era puro. Segundo
algumas seitas gnósticas, Deus não é o criador nem o governador do mundo, por
isso há um enorme abismo entre Ele e o homem. Deus será sempre estranho e
incognoscível ao homem, a não ser que o homem se converta no destinatário de
uma revelação sobrenatural. Ao parecer dos gnósticos, Deus, o ser supremo do
amor, não poderia ter criado este mundo caótico e malvado. Por essa razão
atribuem a criação do mundo a uma deidade menor e imperfeita, o Demiurgo.
O homem, imperfeito por definição, era também obra do Demiurgo (a ideia
do Demiurgo já havia aparecido em O Timeu,
de Platão, como o criador de um belo e harmonioso cosmos; segundo um salmo de
Valentino, a queda de Sofia provocou a criação do Demiurgo que, por sua vez,
foi o artífice do mundo e da matéria). A ignorância e o pecado do homem
eram os responsáveis pela corrupção do mundo. O homem, feito de corpo, alma e
espírito, estava condenado à danação. À excepção de alguns eleitos, que
possuíam uma chama divina ou pneuma, que também era estranha ao mundo material,
a humanidade não poderia se salvar. A fé gnóstica e o cristianismo ortodoxo, no
princípio do século III, estavam tão relacionados que as seitas gnósticas
cristãs floresciam por todo o Império Romano (o gnóstico desejava
transcender todos os males da humanidade neste mundo e só conseguiria mediante
o verdadeiro conhecimento intelectual, e, portanto, acessível só a uma selecta
minoria, cujos membros se denominavam espirituais).
Essa gnose era revelada aos iniciados pelos escritos secretos
e pela iluminação interior. Esses iniciados que supunham ter um conhecimento
maior de Deus, de sua natureza espiritual e da existência humana, separam-se
dos outros cristãos, que aceitavam que o conhecimento de Deus chegava até eles
por meio dos bispos e clérigos da Igreja. Pode-se dizer que o gnosticismo foi
um movimento anti eclesial que resistia aos cristãos que se organizavam como
Igreja. O gnóstico acreditava na presença divina em si mesmo e não em uma
instituição humana, não havia necessidade de uma mediação institucional para se
entrar em contacto com Deus, também por isso os gnósticos se tornaram, para a
Igreja, hereges da fé. O surgimento do gnosticismo é ainda uma questão muito
debatida, havendo uma tendência moderna em fazer coincidir nas suas raízes a filosofia
grega, sobretudo a platónica, mesclada a crenças judaicas, orientais e cristãs
(até o século XIX, só se conhecia o gnosticismo e seus adeptos pelos
escritos de seus adversários ortodoxos, sobretudo Irineu, Tertuliano (160-225),
Orígenes (185-254), Hipólito de Roma (que morreu por volta do ano 200) e
Epífanes (315-403) os quais consideravam as seitas gnósticas perversões
heréticas e, portanto perigosas e, se esmeravam em descrevê-las com precisão,
embora com subjectividade, a fim de refutar suas crenças).
A partir do século IV, o gnosticismo foi relegado ao
esquecimento, provavelmente devido ao intenso combate que sofreu da Igreja;
porém, alguns de seus conceitos sobre o dualismo como a equivalência do
espírito com o bem e da matéria, ou seja, a carne com o mal ainda permanecem,
como podemos observar em Haskins: … alguns elementos de seus preceitos
duais, sobretudo a equiparação do espírito com o bem e da matéria ou a carne
com o mal, seguem presentes no pensamento cristão hoje em dia, e seus indícios
se encontram já na primeira ortodoxia cristã e nos ideais posteriores do
monasticismo ocidental que influenciaram sobretudo no conceito medieval da
virgindade e culminaram com a apoteose da Virgem Maria e na criação mítica de
Maria Madalena.
Maria Madalena nos
textos apócrifos
Nos apócrifos gnósticos, na sua maior parte, escritos entre os
séculos I e III, Maria Madalena tem um papel preponderante como encarnação
terrestre da Sophia Celeste. Ela era considerada a intérprete e reveladora da
doutrina gnóstica, a mulher que
conhecia o todo. Essa definição se encontra no texto apócrifo Diálogo
do Salvador, no qual é Maria Madalena quem revela a grandeza do Revelador. O Pistis Sophia, escrito no
século II ou III d.C., baseado nos ensinamentos do Evangelho de Valentino,
descreve a queda, o arrependimento, as iniciações e a reintegração da Sophia (Sabedoria), o princípio
feminino que emanou da divindade. É o maior e mais elaborado dos textos
gnósticos, o que mais referência faz a Maria Madalena. (é um tratado de
doutrina gnóstica, estruturado como uma revelação, em forma dialógica, de Jesus
ressuscitado a um grupo que abrange os onze e as quatro mulheres, Maria mãe de
Jesus, Maria Madalena, Marta e Salomé, a maioria das perguntas a Jesus são
colocadas por Madalena [...]. Pela profundeza espiritual das perguntas e das
respostas, é louvada por Jesus, de uma forma muito mais solene do que qualquer
outro interlocutor [...]. A ela Jesus se dirige directamente como à pessoa que
pode compreender, ao passo que aos outros discípulos pede um esforço de compreensão)».
In
Wilma Steagall Tommaso, Maria Madalena nos Textos Apócrifos e nas seitas Gnósticas, Revista Último Andar nº 14, Junho, 2006.
Cortesia de Revista/JDACT