E Todos os Caminhos levam ao Falcão da Luz de Maio
«(…) O campo de batalha esteve, sob o sol de Junho, ao pasto das
moscas, das aves de rapina e dos homens cobiçosos que, em muitos aspectos, são
piores e mais vorazes que os abutres. Convenceram o jovem monarca a respeitar a
lei
da guerra, ele vencera e estaria no campo três dias e, do outro lado,
os mortos a apodrecer para que ao castigo de Deus se juntasse o dos vermes
devoradores. Assim foi. Hoje sei, e posso escrevê-lo porque as tenazes ardentes
da Inquisição (maldita) e as maléficas diatribes
dos fanáticos já não me podem tocar, que a vida, apesar de também ser bela,
pouco nos dá de bem, de alegria, de felicidade. Se Deus for sábio é capazd e
estar certo, mas começo a duvidar da sua sabedoria. Pedro, quando as mãos caridosas, finalmente, recolheram o seu
cadáver, de humano já, pouco apresentava, mas compuseram o pobre corpo sobre
uma escada que serviu de prancha, cobriram-no com um pedaço de tecido de
flanela suja e depositaram-no na capela da igreja de Alverca. Os Braganças
instavam o rei a não lhe dar a sepultura que lhe pertencia no Mosteiro da
Batalha e que seu pai mandara construir. O que convinha, depois de tudo,
era apagar-lhe a memória, o local de repouso eterno, cortar-lhe, até depois da
sua alma ter deixado o corpo martirizado, o contacto com o espaço onde
repousavam também os que o tinham gerado, os irmãos, a família. Acabou, mais
tarde, por ser levado para a Igreja de Santa Maria do Castelo em Abrantes
e depois para o Mosteiro de Santo Elói, em Lisboa, a pedido de D. Isabel. Tudo com o consentimento do
marido, depois de choros e rogos, por causa do amor que o rei lhe tinha e de
que se não podia duvidar.
Os dois filhos do regente Pedro,
feitos prisioneiros, pensaram set justiçados. Jaime foi aparelhado para
ficar sem a cabeça, segundo alguns, porque seria o que desejariam os inimigos
do pai, mas tal não aconteceu. O rei não o permitiu, sempre evidenciando a sua
piedade que, aliás, era autêntica. O rei
Afonso nunca foi cruel e o primo tinha quinze anos de idade... Pedro,
muito fraco e doente, sempre fora uma criatura débil e apenas ia nos seus vinte
anos. Era condestável do Reino de Portugal, mestre da Ordem de Aviz,
fronteiro-mor de entre o Tejo e Guadiana, alcaide da cidade da Guarda, cavaleiro
investido e apadrinhado pelo infante Henrique, seu tio, seu dúbio e pertinaz (quando
lhe convinha e à ordem) tio Henrique, o
Navegador (sem nunca?... navegar mar dentro…) Claro que os filhos do
ex-Regente do Reino eram naturalmente, na ordem de sucessão, depois do rei e do
Infante Fernando, hipotéticos sucessores à Coroa. Fernando casara com
uma Bragança... Pedro era culto, escrevera já uma Satyra de félice e infelice vida,
em português e que ele próprio traduziu para o castelhano. Na sua divisa
transpareceu a tragédia da sua triste e curta vida: Peine pour joie. Pedro
foge para Coimbra, logo que pode, e vai pedir, o infeliz, auxílio a
Álvaro de Luna que, obviamente, lho recusa e ficou por Castela a conselho da
mãe, certamente. Que mais poderia fazer
ou aconselhar D. Isabel de Urgel? Teve um grande amigo no marquês de Santilhana,
o inexperiente e frágil filho do Infante.
Afonso, rei de Portugal, não
o perseguiu e, mais tarde, em 1455, recorda-se
bem mestre João, meu amigo, de um documento que compulsou quando um dia viu o
arquivo de Zurara, ao conceder autorização ao irmão Fernando e ao tio Henrique,
para receberem em nome do Príncipe herdeiro as menagens dos Três Estados,
considerou extensível essa concessão ao irmão da rainha, Pedro,
ex-condestável do Reino, seu primo e cunhado. D. Isabel, a rainha de Portugal, em Santarém, num estado de agonia
indescritível, esperava notícias. Conhecia o marido, o pai, o poder do ódio dos
seus inimigos e, transida, penso que, se rezou, o deve ter feito por si própria,
pelo seu próprio destino. Ainda se estivesse grávida... Mas não. O matrimónio
não dera ainda quaisquer frutos. Que
lhe faria o rei, todo nas mãos da nobreza liderada pelo tio Bragança? Soube
da morte do pai e chorou convulsivamente. Que
se passaria com os irmãos? Confidenciaram-lhe que mãos piedosas, das
humildes gentes do povo, como sempre acontece, tinham transportado o corpo do
pai numa escada que servira de esquife, arrancando-o ao opróbrio da putrefacção
e do desfasamento na terra bruta sem sepultura cristã. Como sempre, a escondida
nobreza da gente simples em cuja alma se acoitam ainda os temores e os velhos
sentimentos filiais que se devem aos pais, aos que lhes deram o pão de cada
dia, aos bons príncipes e, naquele caso, ao filho do bom e velho rei João,
que metera no lugar que lhes competia, os odiados castelhanos.
Os Braganças tentam convencer o rei a abandonar a rainha, a repudiá-la.
O rei resiste. Jovem, apaixonado, fiel, Afonso ama a mulher que conheceu desde sempre, com quem trocou os
brinquedos de criança e que sempre o amou também. Na altura era um rapaz
esbelto, que vestia bem, de carmesim, verde, azul ou negro, dos bons veludos importados
da Flandres e através da Borgonha e da Itália. Com o tempo engordou, mas foi
mais tarde, já quando o terceiro filho, o futuro rei entrava na puberdade. O
que os inimigos da rainha continuavam a temer era a influência que ela exercia
sobre o ânimo do monarca. Antes, aplainando os ódios contra o pai e afastando
da absoluta satisfação da sua cupidez os ambiciosos e, agora, não permitindo
que a vingança fosse absoluta. A rainha rezava sabendo que nada devia obstar à
destruição do pai, com seis mil homens mal equipados contra trinta mil do
exército real. Agora rezava por si, pela mãe, pelos irmãos, pela alma do
desgraçado Príncipe das Sete Partidas
cuja derradeira viagem fora dirigida pela seta de ponta de ferro acerada que o
pregara no chão verde seco das margens da Ribeira, logo a seguir ao Alqueva. D. Isabel sabia, porque a informaram
discretamente emissários da mãe e dos amigos do pai, que o besteiro que lhe
matara o progenitor era conhecido e fora pago para o efeito». In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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