A sublevação dos flamengos
«(…) Prefigurando as funções de uma primeira-dama moderna, a duquesa
começou por intervir nos assuntos do exercício do poder, ao lado do duque,
enquanto força apaziguadora de conflitos. E relatado pelo cronista Lefèvre
Saint Remy a cena de pedido de perdão ao duque, no decurso da qual a duquesa,
ladeada por André Toulongeon e pelo preboste da igreja de Saint-Omer, se
manifestou a favor dos habitantes da castelania de Cassel. Estes estavam em
rebelião desde 1427 para defender os
seus direitos consuetudinários postos em causa pelo bailio e Filipe acabou por
submetê-los, no princípio de 1431, depois
de uma verdadeira manifestação de força. Os de Cassel tinham apelado a Paris e
a outras personalidades, temendo o pior em caso de derrota. Entretanto, em
Bruxelas, Isabel dava à luz o seu
primeiro filho, António, a 30 de Dezembro de 1430. De novo, em 1432, quando os tecelões de Gand se
insurgiram contra a política monetária do duque, ela junta-se aos almotacéis e
decanos de ofícios para obter do marido um acordo sem reparações. A duquesa Isabel foi muitas vezes associada às
negociações que estabeleciam um novo entendimento após estas rebeliões.
O alargamento territorial do Estado borgonhês a partir do Norte teve
como consequência uma perda de direitos dos representantes das cidades
flamengas. O reforço do poder principesco conduziu, na realidade, a uma
diminuição dos privilégios adquiridos por esses burgos onde as actividades
artesanais e comerciais se achavam mais desenvolvidas. O descontentamento das
populações provocou violentas revoltas nas quais Filipe, o Bom, acabou por triunfar submetendo-as às suas decisões, levando
assim a uma mudança nas relações de força. Para lá dos momentos críticos,
parece demonstrado que, na partilha das tarefas, desde cedo, a duquesa tomou à
sua conta as questões monetárias e comerciais das cidades, bem como as ligadas
à defesa, para as quais tinha uma sensibilidade apurada. O historiador
português Oliveira Martins (1845-1894) procurou captar o génio
de que eram dotados os seus irmãos, tendo alguns deixado marca na História. A
época excepcional e a personalidade da mãe, a rainha D. Filipa de Lencastre,
terão tido certamente papel determinante no despertar desses talentos. Na corte
do pai, o rei João I, a expansão além-mar empreendida pela família real desde as
costas de Marrocos (Ceuta, Tânger), depois de 1415, tinha um objectivo comercial. Ceuta era um porto de
escoamento das mercadorias agrícolas do interior do país mas também um ponto de
acesso aos produtos do Oriente. Quando Isabel
assumiu as funções que sua mãe desempenhava na corte portuguesa, Lisboa estava
em pleno crescimento, abrigando comerciantes chegados de toda a Europa. Ela estava,
pois, preparada, desde 1431, para
participar no governo do ducado. vindo a assumir importantes cargos de
administração dos estados borgonheses.
A campanha contra as tropas do rei de França
Com o alargamento das possessões do ducado aos
condados do Norte, o duque de Borgonha residia muitas vezes na Flandres, em Bruges
e em Bruxelas. Mas a ameaça das tropas reais estacionadas no vale de Yonne,
depois de terem conquistado Noyers e Avalon, exigiu uma resposta do duque
Filipe, que se dirigiu, em Janeiro de 1432,
a Dijon, deixando a Isabel,
novamente grávida, o governo dos Países Baixos. Encontramo-la em Gand rodeada
de conselheiros: o bispo de Tournai, que a tinha casado, Jean Toisy, os
senhores Antoine Croy e Jean Roubaix, assim como Roland Uutkerque. Jean Gand, um
dos secretários do duque, ficara também ao seu serviço. A duquesa teve de se
ocupar da consolidação da paz de Liège, principado que tinha entrado em
conflito com Namur, sob o poder dos duques desde 1429.A cidade de Liège deveria pagar uma indemnização de 100 000 nobles. Isabel exerceu a delegação do poder durante quatro meses, dispondo
do selo confidencial, revelando grande aptidão para as questões financeiras.
Substituirá ainda o duque, em Abril de 1433,
quando este parte para a Holanda, empenhando-se progressivamente nas tarefas de
administração. Poucos meses depois, em Junho, os duques, juntos, puseram-se a
caminho da Borgonha para defender as suas terras do Sul. E, desta vez, o
governo dos territórios do Norte foi confiado ao seu sobrinho João Borgonha,
conde de Étampes, assistido por um conselho». In Daniel Lacerda, Isabelle de
Portugal – duchesse de Bourgogne, Éditions Lanore, 2008, Isabel de Portugal,
Duquesa de Borgonha, Uma Mulher de Poder no coração da Europa Medieval,
tradução de Júlio Conrado, Editorial Presença, Lisboa, 2010, ISBN
978-972-23-4374-9.
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