quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Uma Arte de Música. Outros Ensaios. Óscar Lopes. «E é da raiz dessa compenetrada solidão que sentimos aquele “sim”, de reconciliação apesar de tudo, que vem de certos textos, de certas curvas musicais, de certos traços plásticos, ou dos rostos que mais temos amado»

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Uma Arte de Música e Outros Ensaios. Palavras de Auto-Explicação
«(…) Quando se verifica a extraordinária quantidade de ambiguidades ou contradições que nós resolvemos no mais simples acto de comunicação razoavelmente logrado, é difícil conceber que a poesia se caracterize pela simples abertura de um texto à ambiguidade e à contradição, sem que essa abertura contenha um desafio à síntese possível e competentemente unívoca de cada aqui e agora. De qualquer modo, aproveito para declarar mais uma vez que não perfilho nem a estética, nem a filosofia, nem a política da ambiguidade. Por muito confusa e indecisa que seja a nossa experiência humana, palavras como eu e nós carregam toda a evidência de uma complexa história unificada de assimilação ou acomodação, e palavras como aqui e agora, ligam-se à evidência dos enquadramentos, dentro dos quais se nos impõe fazer qualquer coisa, aqui e agora entre um passado que está ainda presente sob a forma de resultados e representações, e um futuro evidenciado por um conjunto presente de expectativas a ponderar, ou de alternativas a escolher. Um texto é, assim, uma condensação de experiência social activa. Todavia ler ou escrever um texto denso é passar por uma vivência de profunda solidão, porque o texto poético, fictivo, ou radicalmente meditativo, suspende o dispositivo quotidiano da comunicação: é uma evocação, ou Gedankenexperiment, de mundos possíveis, organizados a partir de fragmentos do mundo mais óbvio, e ligados a hipóteses de uma alternativa mais compreensível ou então mais desejável. Ler ou escrever um texto denso é ainda, por vezes, a procura de um rosto, ou de uma voz, tanto mais voláteis quanto mais importaria apreendê-los. E, no entanto, basta uma pequena e interessada discussão, a dois ou a vários, desse texto, para se verificar que o destinatário que nós pressentíramos a sós afinal não existe, e que uma larga margem das eventuais adesões ao texto surge por coincidência ou por equívoco.
O mais dramático, mas também o mais interessante de tudo, é que o autor acaba por se esquecer de muitas das suas intenções solitárias, acaba por reconhecer a importância de muitas das leituras imprevistas, acaba por reconhecer que o próprio texto se gerou, solitariamente, de muitas coincidências e equívocos análogos, e acaba por entrar no único jogo transitivo possível, que aliás não consiste em seguir, precisamente, a deriva da moda comercial literária, ou a da conjuntura ideológica dominante, mas aquela fugidia deriva que, com o contributo do autor e exegeta, virá a prevalecer a mais longo prazo. E, todavia, insisto, há uma espécie de solidão que é necessária e que está polifonicamente presente nos próprios momentos em que nos dispomos a acompanhar as intuições mais imprevistas dos interlocutores reais. Há uma espécie de solidão tão necessária como aquela solidão em que acordamos para a verdade trágica da nossa condenação à morte como indivíduos e como espécie, em que acordamos (os que acordamos) para a evidência de todo o tipo impune de violência, exploração, estupidez e sufocação das melhores virtualidades humanas, sobretudo hoje, em que muitas dessas virtualidades já são viáveis, e sabendo-se que a sua satisfação viria afinal qualificar as nossas mais altas exigências perante a vida. E é da raiz dessa compenetrada solidão que sentimos aquele sim, de reconciliação apesar de tudo, que vem de certos textos, de certas curvas musicais, de certos traços plásticos, ou dos rostos que mais temos amado.
Acostumado a esta pulsação entre a necessidade de solidão e a de encontro com os outros, confesso, envergonhadamente, que qualquer presença humana me perturba, como se houvesse sempre algum recado pessoal que não sei dar ou receber. E essa perturbação transforma-se numa espécie de remorso quando a separação é definitiva. Falo disto porque o Prémio que me é atribuído tem o nome de um amigo meu de quase meio século, que todos perdemos há poucos meses, um amigo a quem inclusivamente devo, como a Vitorino Nemésio, o parecer que me fez professor universitário. Por isso, as minhas palavras finais têm de ser de reconhecimento e de homenagem. Antes de mais, a Jacinto Prado Coelho, a quem os estudos literários portugueses devem muito de uma fase de maior rigor desde os anos de 40, e que muitos dos actuais docentes de Literatura recordarão, ainda durante muito tempo, como seu mestre e exemplo principal. Já lhe associei o nome de Vitorino Nemésio, que não apenas me deu várias provas de solidariedade preciosa, como lições finíssimas de intuição textual, e um dos meus mais empenhados temas de estudo. Acrescentarei um terceiro nome de ausente definitivo, o de Mário Sacramento, um dos mais abertos espíritos que conheci, vocacionado para o ensaio, vocacionado para o diálogo desassombrado, e também vocacionado para aquela generosa luta que o queimou depressa». In Óscar Lopes, Uma Arte de Música e Outros Ensaios, Oficina Musical, Binográfica, Porto, 1986.

Cortesia de Oficina Musical/JDACT