1988
«(…) Há 20 anos éramos esquerdistas, maoístas, trotskistas, guevaristas,
anarquistas; hoje somos todos neo-liberais e post-modernos (enfim, quase
todos...). De Gaulle disse que éramos la pègre, la chienlit; não fazíamos
a barba, tínhamos longos cabelos, óculos redondos, blue jeans sujos, camisas de flanela, sandálias, os mais
radicais boina e saca maquisard,
onde, à falta de carregadores e rações de combate, iam os livros da 10/18. Eram
os tempos heroicos do 2 cavalos,
e do LSD, do punho fechado, das correrias à frente da Polícia de Choque, do
amor livre, do excesso e da poesia. Os tempos, agora, vão mais para a prosa,
para Megas Ferreiras e Vascos Graça Moura, para a monogamia e para os preservativos.
E para os carros caros, as camisas de seda, as gravetas Balmain, os pubs, a heroína. Os hippies tornaram-se yuppies, e mudaram-se do Vavá para o
João Sebastião Bar e do Piolho para o bar do Sheraton; já não celebramos a Marx,
Marcuse e Mao, nem aos seus profetas Cohn-Bendit, Geismar, Sauvageot, Rudi Vermelho Dutke, mas Wall Street, à
Reaganomics, ao sucesso e ao dinheiro.
Diz-se revolução, ensinam os dicionários burgueses, o movimento de um corpo que, descrevendo uma curva fechada,
passa sucessivamente pelos mesmos lugares; os revolucionários de há 20 anos
descobriram, pelo menos na Europa, que os dicionários sabem mais de revoluções
do que o livrinho vermelho das citações. Continuam (continuamos) tão
razoáveis como dantes; só que já não exigimos o impossível, mas tão-só
deixarmos de ser pobres e, se não for pedir muito, sermos ricos, ou podermos
ostentar look em conformidade; o BMW (ou, ao menos, o Rover), o
American Express (ou, ao menos, o Visa), a casa de praia (nem que seja
em time sharing), o fato Pestana
e Brito (na pior das hipóteses da Alfaiataria Ayres), as acções da SONAE
(ou, vá lá, da PROADEC). Burgueses éramos, já então, todos, ou ainda
menos, como Cesariny solitariamente explicava em pleno consulado neo-realista.
Hoje continuamos a ser burgueses, mas já não vemos, afinal, mal nenhum nisso. O
compromisso político foi substituído pela chamada transgressão estética e já ninguém deixa de ir ao S. Carlos por
causa do smoking. Todos queremos ser
burgueses e os poucos corações proletários não são poupados pelas prosas convertidas
de Pacheco Pereira e de Vilaverde Cabral.
Estes tempos são tempos de arrependidos de todos os géneros; Bob Dylan
está cheio de dinheiro e usa lentes de contacto; Regis Debray estuda Milton
Friedman às escondidas. Não transformámos o mundo nem mudámos a vida; a vida é
que nos mudou a todos (o Che morreu na Bolívia, baleado por um ‘ranger’ anónimo; José
Afonso morreu de doença; e o Artur Queirós ganhou o
Prémio Ibéria de Jornalismo). Foi uma derrota sem glória, pelo menos sem
tanta glória como a derrota dos nossos pais nas trincheiras de Valência, nos
campos de Almeria, ou passando o Ebro en un barquito de vela. Os revolucionários,
mesmo os de café, são os cornudos da História; nós nem por isso. Os cafés passaram
a bancos e as namoradas com quem, de mãos dadas, atravessámos os anos da brasa,
sobre as barricadas do Quartier Latin ou nos jardins da Cidade Universitária,
são hoje professoras do liceu e assinantes do Círculo de Leitores.
Restam-nos alguns discos, alguns livros, algumas memórias. E nem temos
uma história, uma grande história, para contar aos filhos, porque os nossos
filhos preferem as histórias dos campeões da Wall Street e emocionam-se mais
com um crash, da Bolsa do que com
verduras românticas com pavés, slogans, ocupações
selvagens. Elvis Presley afinal, não
era informador da CIA? João XXIII
não tinha acções nas fábricas de material de guerra? Giap não tinha campos de concentração?
Fidel não tinha Padilla a apodrecer
numa cadeia?» In Manuel António Pina, JN, 5 de Março de 1988.
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
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