E Todos os Caminhos levam ao Falcão da Luz de Maio
«(…) A partilha fez-se
sobre o cadáver do Infante, literalmente. A voracidade dos Braganças
atingiu a loucura da orgia desenfreada. O duque ficou em Guimarães e só não
devorou a sua boca desdentada o Porto porque a cidade e o município se
opuseram tenazmente. O filho, o Ourém, teve a doação, embora só em 1451, de Valença do Minho e o seu marquesado.
Vasco Fernandes Coutinho, esse, não se ficou atrás. Foi feito pelo rei
conde de Marialva. A proporção de doações e bens estava equilibrada. Quem
fizera a partilha fora o velho, trôpego, marreco e sinuoso
Afonso de Bragança que, nesse dia, sem quaisquer problemas de
consciência, cimentava o seu poder e o da sua casa. Não podia ser rei, mas
um dia um descendente seu...
A prole do Infante Pedro não
era curta e os restantes filhos teriam de sofrer pelo pai. O velho Bragança
assim influenciava o sobrinho dividido entre o respeito pela tia, o amor pela
mulher e a cabala de intrigas que o afogavam em tristeza. Afonso não foi homem de criar conflitos a não ser os que a
sua índole de fraco e a sua mente de criança crescida propiciaram durante quase
toda a vida. O jovem Pedro, que
deixara de ser condestável, ainda tentara resguardar-se nas suas terras de
entre o Tejo e Guadiana. O mestrado de Aviz possuía fortalezas privadas e o
Príncipe guardava os castelos de Marvão e Elvas. Mas acabou por fugir. O irmão do
arcebispo Noronha (o conde Sancho de Noronha) foi nomeado para os
cargos. Foi-lhe doada Portalegre e recebeu sempre da população local viva
resistência a si e aos seus homens e familiares. O povo não perdoava a
traição feita ao Infante e sua descendência mas a cara dos seus assassinos
não se tingia do rubor da vergonha como sucede sempre com os medíocres, os
néscios e os patifes. O condestável fugiu para Valência, depois de
aconselhado pelos seus e pela mãe. O Bragança
conseguiu ainda a promessa do rei de não conceder autorização ao pobre sobrinho
para voltar ao País. O outro, Jaime,
logo que a sensata bondade do Rei o libertou, fugiu para Borgonha, para a corte
da tia duquesa, que recebeu de braços abertos os filhos do seu irmão preferido.
Ela deu-lhe casa, estado, fê-lo eclesiástico, cardeal. Antes, participou da corte
pontifícia e foi nomeado arcebispo de Lisboa sem nunca aqui voltar. O Infante João, o mais novo, foi em 1451 para a Borgonha onde a tia tratou
do casamento dele com Carlota Lusignan. Recebeu o título de rei de Chipre. D. Beatriz casou com o duque de
Clèves, Adolfo.
Com a rainha D. Isabel
vivia, desde os sete anos, a jovem Filipa de Lencastre que recebera o
nome em honra da avó inglesa. Por medida de segurança, com dez anos de
idade, e a conselho da mãe, recolheu-se ao Convento de Odivelas. Nunca tomou
votos mas por lá ficou, sem casar, até à morte. De certa forma ela foi a consciência última, viva e
discreta da família, do pai, do seu sonho e a última a morrer. D.
Isabel de Urgel reuniu as suas servidoras, dividiram elas o que podiam
dividir do que lhe pertencia e, depois, com algumas das suas aias e criadas que
preferiram acompanhá-la, recolheu-se ao Convento de Santa Clara de Coimbra.
Tudo se desfazia à sua volta. De momento, com a filha sob a protecção de
Castela, onde a prima era a Rainha, e de Borgonha, podia, pelo menos, chorar em
paz a morte do marido. Em relativa paz. D.
Isabel, essa, a Rainha de Portugal, absolutamente
só, não fora o marido... mas a condessa de Urgel e duquesa de Coimbra
não queria sequer ouvir falar do genro e sobrinho. Nem vê-lo. Nunca mais. A não
ser que desse acto de fraqueza dependesse a vida e o futuro da filha. Mas o rei
Afonso amava a mulher. Já o
demonstrara nos derradeiros tempos da vida do sogro quando o tinham arrastado
para uma miserável intriga em que a rainha fazia de adúltera com Álvaro Castro,
camareiro-mor do rei, acusando-o de manter uma ligação sexual com a pobre rainha.
O futuro conde de Monsanto, por ordem dos Braganças, acabou preso. Afonso, no entanto, refutou a calúnia,
mandou libertar Álvaro e publicamente tratou-o com todo o decoro e amizade
porque conhecia a pureza da mulher, a sua integridade moral. Já antes os
apaniguados do velho Bragança lhe tinham soprado aos ouvidos o perigo do
jovem monarca participar abusivamente
dos jogos de amor com a mulher porque isso podia fazer-lhe mal fisicamente
além de que tantas conversas com a
jovem o tornariam efeminado, o que traduz a paixão que o rei tinha por
ela e a premente necessidade de a ter junto de si. De resto, Isabel defendia-se também, prendendo-o
às suas saias. O jogo do gato e do rato estendia-se ao próprio leito real onde,
se o rei estivesse a maior parte do tempo desfrutando da mulher que lhe
pertencia, menos possibilidade haveria de lhe colocar na cama outra qualquer,
mesmo que fosse apenas uma rameira de ocasião, que o afastasse da rainha para, depois,
ele ser lançado nos braços de alguma mulher escolhida pelos Braganças...
Por outro lado, com o tempo e com o amor sincero do rei a mantê-la Rainha de
Portugal, talvez ainda a intriga contra o pai fosse descoberta, os seus inimigos
castigados e a duquesa de Coimbra com seus filhos pudesse também regressar ao
seu antigo estado. Mas os outros também o sabiam. De momento...» In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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