domingo, 9 de fevereiro de 2014

Crónica Esquecida. El rei João II. Seomara Veiga Ferreira. «… a Sancho de Noronha foi-lhe doada Portalegre e recebeu sempre da população local viva resistência a si e aos seus homens e familiares. O povo não perdoava a traição feita ao Infante e sua descendência; a cara dos seus assassinos não se tingia do rubor da vergonha como sucede sempre com os medíocres, os néscios e os patifes»

jdact

E Todos os Caminhos levam ao Falcão da Luz de Maio
«(…) A partilha fez-se sobre o cadáver do Infante, literalmente. A voracidade dos Braganças atingiu a loucura da orgia desenfreada. O duque ficou em Guimarães e só não devorou a sua boca desdentada o Porto porque a cidade e o município se opuseram tenazmente. O filho, o Ourém, teve a doação, embora só em 1451, de Valença do Minho e o seu marquesado. Vasco Fernandes Coutinho, esse, não se ficou atrás. Foi feito pelo rei conde de Marialva. A proporção de doações e bens estava equilibrada. Quem fizera a partilha fora o velho, trôpego, marreco e sinuoso Afonso de Bragança que, nesse dia, sem quaisquer problemas de consciência, cimentava o seu poder e o da sua casa. Não podia ser rei, mas um dia um descendente seu...
A prole do Infante Pedro não era curta e os restantes filhos teriam de sofrer pelo pai. O velho Bragança assim influenciava o sobrinho dividido entre o respeito pela tia, o amor pela mulher e a cabala de intrigas que o afogavam em tristeza. Afonso não foi homem de criar conflitos a não ser os que a sua índole de fraco e a sua mente de criança crescida propiciaram durante quase toda a vida. O jovem Pedro, que deixara de ser condestável, ainda tentara resguardar-se nas suas terras de entre o Tejo e Guadiana. O mestrado de Aviz possuía fortalezas privadas e o Príncipe guardava os castelos de Marvão e Elvas. Mas acabou por fugir. O irmão do arcebispo Noronha (o conde Sancho de Noronha) foi nomeado para os cargos. Foi-lhe doada Portalegre e recebeu sempre da população local viva resistência a si e aos seus homens e familiares. O povo não perdoava a traição feita ao Infante e sua descendência mas a cara dos seus assassinos não se tingia do rubor da vergonha como sucede sempre com os medíocres, os néscios e os patifes. O condestável fugiu para Valência, depois de aconselhado pelos seus e pela mãe. O Bragança conseguiu ainda a promessa do rei de não conceder autorização ao pobre sobrinho para voltar ao País. O outro, Jaime, logo que a sensata bondade do Rei o libertou, fugiu para Borgonha, para a corte da tia duquesa, que recebeu de braços abertos os filhos do seu irmão preferido. Ela deu-lhe casa, estado, fê-lo eclesiástico, cardeal. Antes, participou da corte pontifícia e foi nomeado arcebispo de Lisboa sem nunca aqui voltar. O Infante João, o mais novo, foi em 1451 para a Borgonha onde a tia tratou do casamento dele com Carlota Lusignan. Recebeu o título de rei de Chipre. D. Beatriz casou com o duque de Clèves, Adolfo.
Com a rainha D. Isabel vivia, desde os sete anos, a jovem Filipa de Lencastre que recebera o nome em honra da avó inglesa. Por medida de segurança, com dez anos de idade, e a conselho da mãe, recolheu-se ao Convento de Odivelas. Nunca tomou votos mas por lá ficou, sem casar, até à morte. De certa forma ela foi a consciência última, viva e discreta da família, do pai, do seu sonho e a última a morrer. D. Isabel de Urgel reuniu as suas servidoras, dividiram elas o que podiam dividir do que lhe pertencia e, depois, com algumas das suas aias e criadas que preferiram acompanhá-la, recolheu-se ao Convento de Santa Clara de Coimbra. Tudo se desfazia à sua volta. De momento, com a filha sob a protecção de Castela, onde a prima era a Rainha, e de Borgonha, podia, pelo menos, chorar em paz a morte do marido. Em relativa paz. D. Isabel, essa, a Rainha de Portugal, absolutamente só, não fora o marido... mas a condessa de Urgel e duquesa de Coimbra não queria sequer ouvir falar do genro e sobrinho. Nem vê-lo. Nunca mais. A não ser que desse acto de fraqueza dependesse a vida e o futuro da filha. Mas o rei Afonso amava a mulher. Já o demonstrara nos derradeiros tempos da vida do sogro quando o tinham arrastado para uma miserável intriga em que a rainha fazia de adúltera com Álvaro Castro, camareiro-mor do rei, acusando-o de manter uma ligação sexual com a pobre rainha. O futuro conde de Monsanto, por ordem dos Braganças, acabou preso. Afonso, no entanto, refutou a calúnia, mandou libertar Álvaro e publicamente tratou-o com todo o decoro e amizade porque conhecia a pureza da mulher, a sua integridade moral. Já antes os apaniguados do velho Bragança lhe tinham soprado aos ouvidos o perigo do jovem monarca participar abusivamente dos jogos de amor com a mulher porque isso podia fazer-lhe mal fisicamente além de que tantas conversas com a jovem o tornariam efeminado, o que traduz a paixão que o rei tinha por ela e a premente necessidade de a ter junto de si. De resto, Isabel defendia-se também, prendendo-o às suas saias. O jogo do gato e do rato estendia-se ao próprio leito real onde, se o rei estivesse a maior parte do tempo desfrutando da mulher que lhe pertencia, menos possibilidade haveria de lhe colocar na cama outra qualquer, mesmo que fosse apenas uma rameira de ocasião, que o afastasse da rainha para, depois, ele ser lançado nos braços de alguma mulher escolhida pelos Braganças... Por outro lado, com o tempo e com o amor sincero do rei a mantê-la Rainha de Portugal, talvez ainda a intriga contra o pai fosse descoberta, os seus inimigos castigados e a duquesa de Coimbra com seus filhos pudesse também regressar ao seu antigo estado. Mas os outros também o sabiam. De momento...» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT