sábado, 8 de fevereiro de 2014

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Os Braganças tentam convencer o rei a abandonar a rainha, a repudiá-la. O rei resiste. Jovem, apaixonado, fiel, Afonso ama a mulher que conheceu desde sempre, com quem trocou os brinquedos de criança e que sempre o amou também»

jdact

E Todos os Caminhos levam ao Falcão da Luz de Maio
«(…) O campo de batalha esteve, sob o sol de Junho, ao pasto das moscas, das aves de rapina e dos homens cobiçosos que, em muitos aspectos, são piores e mais vorazes que os abutres. Convenceram o jovem monarca a respeitar a lei da guerra, ele vencera e estaria no campo três dias e, do outro lado, os mortos a apodrecer para que ao castigo de Deus se juntasse o dos vermes devoradores. Assim foi. Hoje sei, e posso escrevê-lo porque as tenazes ardentes da Inquisição (maldita) e as maléficas diatribes dos fanáticos já não me podem tocar, que a vida, apesar de também ser bela, pouco nos dá de bem, de alegria, de felicidade. Se Deus for sábio é capazd e estar certo, mas começo a duvidar da sua sabedoria. Pedro, quando as mãos caridosas, finalmente, recolheram o seu cadáver, de humano já, pouco apresentava, mas compuseram o pobre corpo sobre uma escada que serviu de prancha, cobriram-no com um pedaço de tecido de flanela suja e depositaram-no na capela da igreja de Alverca. Os Braganças instavam o rei a não lhe dar a sepultura que lhe pertencia no Mosteiro da Batalha e que seu pai mandara construir. O que convinha, depois de tudo, era apagar-lhe a memória, o local de repouso eterno, cortar-lhe, até depois da sua alma ter deixado o corpo martirizado, o contacto com o espaço onde repousavam também os que o tinham gerado, os irmãos, a família. Acabou, mais tarde, por ser levado para a Igreja de Santa Maria do Castelo em Abrantes e depois para o Mosteiro de Santo Elói, em Lisboa, a pedido de D. Isabel. Tudo com o consentimento do marido, depois de choros e rogos, por causa do amor que o rei lhe tinha e de que se não podia duvidar.
Os dois filhos do regente Pedro, feitos prisioneiros, pensaram set justiçados. Jaime foi aparelhado para ficar sem a cabeça, segundo alguns, porque seria o que desejariam os inimigos do pai, mas tal não aconteceu. O rei não o permitiu, sempre evidenciando a sua piedade que, aliás, era autêntica. O rei Afonso nunca foi cruel e o primo tinha quinze anos de idade... Pedro, muito fraco e doente, sempre fora uma criatura débil e apenas ia nos seus vinte anos. Era condestável do Reino de Portugal, mestre da Ordem de Aviz, fronteiro-mor de entre o Tejo e Guadiana, alcaide da cidade da Guarda, cavaleiro investido e apadrinhado pelo infante Henrique, seu tio, seu dúbio e pertinaz (quando lhe convinha e à ordem) tio Henrique, o Navegador (sem nunca?... navegar mar dentro…) Claro que os filhos do ex-Regente do Reino eram naturalmente, na ordem de sucessão, depois do rei e do Infante Fernando, hipotéticos sucessores à Coroa. Fernando casara com uma Bragança... Pedro era culto, escrevera já uma Satyra de félice e infelice vida, em português e que ele próprio traduziu para o castelhano. Na sua divisa transpareceu a tragédia da sua triste e curta vida: Peine pour joie. Pedro foge para Coimbra, logo que pode, e vai pedir, o infeliz, auxílio a Álvaro de Luna que, obviamente, lho recusa e ficou por Castela a conselho da mãe, certamente. Que mais poderia fazer ou aconselhar D. Isabel de Urgel? Teve um grande amigo no marquês de Santilhana, o inexperiente e frágil filho do Infante.
Afonso, rei de Portugal, não o perseguiu e, mais tarde, em 1455, recorda-se bem mestre João, meu amigo, de um documento que compulsou quando um dia viu o arquivo de Zurara, ao conceder autorização ao irmão Fernando e ao tio Henrique, para receberem em nome do Príncipe herdeiro as menagens dos Três Estados, considerou extensível essa concessão ao irmão da rainha, Pedro, ex-condestável do Reino, seu primo e cunhado. D. Isabel, a rainha de Portugal, em Santarém, num estado de agonia indescritível, esperava notícias. Conhecia o marido, o pai, o poder do ódio dos seus inimigos e, transida, penso que, se rezou, o deve ter feito por si própria, pelo seu próprio destino. Ainda se estivesse grávida... Mas não. O matrimónio não dera ainda quaisquer frutos. Que lhe faria o rei, todo nas mãos da nobreza liderada pelo tio Bragança? Soube da morte do pai e chorou convulsivamente. Que se passaria com os irmãos? Confidenciaram-lhe que mãos piedosas, das humildes gentes do povo, como sempre acontece, tinham transportado o corpo do pai numa escada que servira de esquife, arrancando-o ao opróbrio da putrefacção e do desfasamento na terra bruta sem sepultura cristã. Como sempre, a escondida nobreza da gente simples em cuja alma se acoitam ainda os temores e os velhos sentimentos filiais que se devem aos pais, aos que lhes deram o pão de cada dia, aos bons príncipes e, naquele caso, ao filho do bom e velho rei João, que metera no lugar que lhes competia, os odiados castelhanos.
Os Braganças tentam convencer o rei a abandonar a rainha, a repudiá-la. O rei resiste. Jovem, apaixonado, fiel, Afonso ama a mulher que conheceu desde sempre, com quem trocou os brinquedos de criança e que sempre o amou também. Na altura era um rapaz esbelto, que vestia bem, de carmesim, verde, azul ou negro, dos bons veludos importados da Flandres e através da Borgonha e da Itália. Com o tempo engordou, mas foi mais tarde, já quando o terceiro filho, o futuro rei entrava na puberdade. O que os inimigos da rainha continuavam a temer era a influência que ela exercia sobre o ânimo do monarca. Antes, aplainando os ódios contra o pai e afastando da absoluta satisfação da sua cupidez os ambiciosos e, agora, não permitindo que a vingança fosse absoluta. A rainha rezava sabendo que nada devia obstar à destruição do pai, com seis mil homens mal equipados contra trinta mil do exército real. Agora rezava por si, pela mãe, pelos irmãos, pela alma do desgraçado Príncipe das Sete Partidas cuja derradeira viagem fora dirigida pela seta de ponta de ferro acerada que o pregara no chão verde seco das margens da Ribeira, logo a seguir ao Alqueva. D. Isabel sabia, porque a informaram discretamente emissários da mãe e dos amigos do pai, que o besteiro que lhe matara o progenitor era conhecido e fora pago para o efeito». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT