Neta de uma ‘Rainha Proprietária’ (1014-1072)
«(…) A tomada de Montemor por parte dos sarracenos tinha significado um
duro golpe para o orgulho leonês. Com ela os muçulmanos tinham completado a
conquista dos baluartes do Mondego e feito retroceder os cristãos até ao Douro.
Não só aquelas férteis terras tinham caído em mãos do infiel, como os seus
chefes tinham ordenado o seu repovoamento com muçulmanos andaluzes. Afonso V
começaria a guerrear nesses territórios. Há muito tempo que nas reuniões da
cúria régia não se respirava tanto optimismo. O palatium deliberou sobre
os pormenores da empresa. A primeira expedição teria como objectivo
reconquistar terras até às faldas da Serra da Estrela, com Viseu como ponto
principal. Fora também planeado apoderarem-se de Coimbra. Antes de as tropas
partirem, na catedral de Leão ressoaram os cânticos que saudavam os exércitos,
estabelecidos pelo Liber Ordinum para estas ocasiões, segundo o rito moçárabe
ainda vigente em todo o reino. Estava previsto que nessa mesma igreja, uma vez
conseguida a reconquista de Viseu, se celebrasse o matrimónio de D. Sancha com
o filho do conde de Castela. Um plano que Afonso V tinha subscrito, não
obstante a oposição dos seus nobres. Não antevia a hora de poder reconquistar Viseu
para o realizar.
Mas nenhum destes projectos seria levado a cabo. Segundo narra o bispo
Pelayo de Oviedo, contemporâneo de D. Teresa de Portugal, Afonso V foi morto por uma seta na fortaleza de
Viseu, em Portugal. Aconteceu depois de as suas tropas terem sitiado a
cidade do seu bisavô, Ramiro II, o rei cujas proezas militares tentava emular. Numa
tarde de muito calor, Afonso, com uma certa imprudência, saiu para inspeccionar
pessoalmente o terreno. Ao analisar a parte inferior da muralha, foi atingido
por um arqueiro que o observava, protegido atrás de uma ameia. Corria o mês de
Julho de 1028. D. Sancha jamais
esqueceria essa desgraça, que acabou com a vida do pai, por quem sentia
devoção, uma morte que a deixava a um passo do altar, exposta às intrigas
cortesãs. Quando chegou a Leão o cadáver do rei, ela dispôs, como o monarca
tinha ordenado, que fosse enterrado ao lado da sua primeira mulher, a
portucalense D. Elvira Mendes, na igreja de São João Baptista, de que D. Sancha
era abadessa. Talvez D. Teresa nunca tivesse lido o relato da Crónica
de Pelayo de Oviedo que narrava esse episódio, uma vez que esse bispo a
tinha escrito quando ela vivia em Portugal, mas é quase certo que conheceria os
pormenores do sucedido através das palavras da tia, a infanta D. Urraca, filha
mais velha de D. Sancha.
Passado o luto, o novo rei, Bermudo III (1023-1037), dispôs que a
sua irmã D. Sancha casasse com o conde Garcia de Castela, como já tinha
decidido o pai. Mas o castelhano foi apunhalado na altura em que entrava na
igreja. A infanta pensava que isso não teria acontecido se aquele estivesse
vivo. A partir de então, demonstrou uma grande rejeição por tudo o que fosse
aparentemente tíbio e pouco contundente, uma
atitude que também herdaria a sua neta D. Teresa. D. Sancha também
sabia ser muito pragmática, e pouco tempo depois do assassínio do seu prometido,
casou com o infante Fernando, segundo filho do rei de Navarra e um dos maiores
beneficiados com aquele luto, dado que, devido a ele, tinha herdado da mãe o
condado de Castela. Com o acordo tácito da sua mulher, o infante Fernando
acabaria por enfrentar o cunhado, o rei Bermudo III, que morreria na batalha
de Tamarón, no dia 3 de Setembro de 1037.
Assim acabava, por linha de varão, a linhagem dos reis asturianos nascida
com Pelayo, no ano de 718, após
a lendária batalha de Covadonga.
D. Sancha tornou-se rainha proprietária de Leão. Nos primórdios da dinastia,
duas mulheres tinham transmitido os seus direitos reais aos seus respectivos
maridos. Mas ali acabara todo o seu protagonismo, porque seriam estes os
verdadeiros governantes. Não foi esse o caso de D. Sancha. Evidentemente, ela
não negaria a Fernando um direito reconhecido tanto pelo Foro Jurisdicional,
a lei visigoda vigente em Leão,
como pelo direito navarro, que a sua família por afinidade respeitava, que
contemplavam a legitimidade das mulheres à herança da coroa mas como
transmissoras do poder. Fernando seria o contrário de um rei consorte, daí que
seja conhecido como o Magno. Mas
os acontecimentos do reinado do marido mostram claramente que não se limitou a
dar-lhe filhos ou a servi-lo como discreta conselheira na intimidade dos
aposentos reais, como tinha feito a maioria das suas antepassadas até então,
pois parece que grande parte das medidas tomadas por ele foram prosseguidas por
ela, embora os historiadores se limite m a dizer que Fernando I de Leão e
Castela a tinha em grande estima e costumava chamar-lhe spiraculum prudentiae, ou
manancial de prudência. Ao fim e ao cabo, era a ela que devia o trono,
de forma semelhante à que sucederia com Henrique de Borgonha relativamente à
sua mulher quanto ao seu domínio sobre as terras portuguesas». In
Marsilio Cassotti, D. Teresa, A Primeira Rainha de Portugal, Prefácio de G.
Oliveira Martins, Attilio Locatelli, A Esfera dos Livros, 2008, ISBN
978-989-626-119-1.
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