«A obra de Herculano é em grande parte, se não toda, doutrinária, com um
matiz mais ou menos acentuadamente polémico. São-no os dez volumes já
publicados de Opúsculos. É-o uma extensa actividade jornalística, de que hoje,
para além da recolha parcial nos Opúsculos, apenas nos está
facilmente acessível o conjunto de vinte e cinco artigos publicados em 1853 em O Português,
identificados e reunidos por António
José Saraiva. É-o o volume de Estudos sobre o Casamento Civil, e uma fracção dos cinco volumes de Cartas, publicadas por Vitorino
Nemésio, sem falar de muitas outras ainda hoje inéditas ou dispersas, estas
últimas, as dispersas, agrupadas em vinte e seis títulos diferentes por Andrée
Crabbé Rocha em 1965. São-no sem
dúvida a História de Portugal, e principalmente a História da Origem e do
Estabelecimento da Inquisição em Portugal, nomeadamente pelo que toca a
advertências, prólogos, partes de introdução geral e certo número das suas notas.
O Monásticon contém, não uma
mas várias teses, bem como a restante novelística e a própria poesia que até
nós chegou. Abreviando, podemos conceber o conjunto da obra herculaniana como
constituindo uma série de esquadrões em formatura de combate, ou em
fases de uma e a mesma campanha, iniciada pela sua obscura participação no
levantamento de Cavalaria 4, em 1831,
o seu alistamento como voluntário da Rainha, as suas várias entradas em fogo
durante o Cerco do Porto.
Estamos ainda longe de dispor de uma parte considerável dos textos
herculanianos sobreviventes, e, apesar dos estudos sintéticos de grande fôlego,
como os de Gomes Brito, Carlos Portugal Ribeiro, António Serpa Pimentel, Vitorino
Nemésio, António José Saraiva, Barradas Carvalho, Veríssimo Serrão, e de
numerosas monografias, algumas das quais muito recentes e até por editar em letra
de forma, a verdade é que pouco de seguro e importante se poderá adiantar sobre
o Herculano polémico, o Herculano
que aqui nos interessa, quero dizer, sobre o Herculano inserido no jogo de
forças socioeconómicas e socioculturais a que reage e em que se forma (no
sentido geral, médio-passivo, e não restritamente reflexo deste se). Aquilo que me proponho fazer é um
simples ensaio, e baseia-se numa minha intuição muito vivaz: é a de que, quando
se pretende caracterizar uma pessoa, incluindo nós próprios, as pistas mais
reveladoras encetam-se com perguntas como estas: Qual é o objecto de negação mais dinâmica dessa pessoa? Quais os adversários que ela discerne ou,
porventura, escolhe? Qual a
coisa, quais as coisas que desencadeiam a sua aversão ou o seu medo mais
permanentes, consequentes, e portanto mais profundos?
Num escritor plurifacetadamente polémico, tal Herculano, esta pergunta,
ou perguntas, deveria(m) dirigir-se ao historiador, ao articulista doutrinário
de vários temas, ao novelista, ao poeta, mas também, se não sobretudo, àquela
tessitura aparentemente micro-textual mas na realidade englobante, cuja
evidência se designa pela palavra estilo.
De um modo geral, seria talvez metodologicamente preferível começar por
determinar o complexo inseparavelmente genético e estrutural do pensamento
doutrinário herculaniano; contrastar essa génese estruturada, ou essa estrutura
genética, com o seu contexto convivencial, nacional e europeu ocidental, e, por
aproximações sucessivas, passar dessa ossatura doutrinária à carnadura da sua escrita
e efabulação, apurando, correlativamente, o que na obra de Herculano constitui
aquilo que a escola de Jacques Lacan se concebe como sendo da ordem do
simbólico e aquilo que pertence à ordem, mais dificilmente apreensível, e
todavia evidente, do imaginário.
Mas surgem duas razões para não respeitar esta ordem, por assim dizer
canónica, de investigação. A primeira razão é que, como lembrei, embora
pouco de seguro se saiba da obra de Herculano
relativamente às nossas exigências contemporâneas de rigor descritivo e
explicativo, a verdade é que algo já sabemos, ou julgamos saber, e isto em
vários domínios. A segunda razão é que, cronologicamente, Herculano se
manifestou primeiro como poeta e teorizador da literatura, depois como
novelista, e, mais tarde, e na fase amadurecida, como historiador e pensador acerca
dos grandes problemas nacionais. Há, por exemplo, uma imagem definida em que
sentimos o jovem Herculano a rever-se perante o Portugal do seu tempo. É a imagem de um profeta, ou vate,
judaico-cristão, denunciando a torpeza de um vulgo anónimo, o qual vulgo, ou
populacho, esquecido da sua libertação religiosa e civil atribuída a Cristo,
se converte em turba envilecida de servos de tiranos ou,
alternativamente, se converte ela
própria em tirano multitudinário e blasfemo, escarnecedor ignominioso da
Cruz, e em qualquer caso acarretando a corrupção, o vilipêndio, as piores
abominações, e por último o fecho de
mais um ciclo de civilização e a ira do Eterno no Juízo Final, que o próprio
profeta já visiona.
Ora, a polémica herculaniana colocar-se-á predominantemente neste registo
solene e terrífico de um vate visitado pelo Espírito ou pelo Anjo do Senhor,
tal como quando o poeta dedilha a juvenil Harpa do Crente, e isto quer nos
versículos anti-setembristas de A Voz do Profeta, quer nos vários Solemnia
Verba anti-ultramontanos, quer no Prólogo da História e do Estabelecimento
da Inquisição... O torneamento mais consumado desta fixação, ou super ego, herculaniano é, evidentemente,
Eurico,
presbítero do ermitério de Carteia, meditando sobre os próprios desenganos de
amor, o desmerecimento da redenção cristã por parte da sua pátria visigoda, e
visionando a agonia do império godo como a escuridão trovejante fechada pelo
súbito encastelamento de bulcões de nuvens vindas do Sul». In Óscar Lopes, Álbum de Família,
Ensaios sobre Autores Portugueses do século XIX, Reflexões sobre Herculano como
polemista, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1984.
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