Tráfico e Tráficos. Os navios negreiros não param de passar
«(…) O compromisso para a erradicação da escravidão foi reforçado no ano
seguinte, 1957, pela adopção pela organização Internacional do Trabalho (OIT)
da Convenção sobre a Abolição do Trabalho Forçado. No mesmo sentido, a OIT adoptara,
em 1999, como recomendação a todos
os Estados-membros, a convenção para proibição das piores formas de trabalho
infantil e a acção imediata para a sua eliminação Finalmente, em 2000, a Assembleia Geral da ONU aprovou
o Protocolo de prevenção, supressão e punição do tráfico de pessoas, em especial
de mulheres e crianças, no âmbito do combate ao crime organizado transnacional.
Nesse mesmo ano, no dia internacional para abolição da escravatura, em 2 de Dezembro
do ano 2000, estávamos quase a
entrar no século XXI, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, que no ano
seguinte receberia o Prémio Nobel da Paz,
fazia assim o ponto da situação:
Há mais de 50 anos, foi redigido o artigo 4.º da Declaração universal
dos Direitos Humanos, afirmando que ninguém será mantido em escravidão ou em
servidão e que a escravatura e o tráfico de escravos serão proibidos em todas
as suas formas. Apesar de todos os esforços realizados desde então para abolir
a escravatura em todas as suas formas, a escravatura não desapareceu. Continua
a rer uma realidade e está mesmo a voltar a crescer em algumas partes do Mundo.
A escravatura é uma afronta a todos os homens e todas as mulheres livres, na verdade
a toda a Humanidade. Novas formas de escravidão, tais como a exploração de
crianças para fins sexuais, o trabalho infantil, o trabalho forçado, a
servidão, o trabalho de imigrantes ilegais, o trabalho familiar, a escravatura
com fins rituais ou religiosos e o tráfico de seres humanos, colocam outros
tantos desafios que temos de enfrentar com toda a urgência.
[…]
Além disso, é urgente promulgar leis e tomar medidas para garantir que
as novas formas de exploração e de opressão a que estamos a assistir não se
transformam, a prazo, em escravatura. Mas é também urgente garantir que aqueles
que se dedicam a práticas esclavagistas serão identificados e impedidos de
fazer o mal.
A História anda devagar quando se trata de garantir o respeito pelos direitos
humanos. Ignorar isso é quase tão perigoso como pensarmos que nada muda. E nem
a existência de escravatura ao longo dos tempos pode justificar a escravatura
nos dias de hoje, nem a existência da escravatura contemporânea pode servir
para desvalorizar a dimensão e a violência da escravatura no passado. Pelo
contrário, o conhecimento histórico pode e deve ser um tónico poderoso para o
nosso sobressalto cívico, sempre que a dignidade humana é posta em causa.
A componente africana do tráfico
Em meados do século XVIII, um velho chefe africano da Costa da Mina,
talvez antepassado longínquo de Kofi Annan, que nasceu no Gana, comentava para
um mercador de escravos dinamarquês:
Sois vós, vós os brancos, quem trouxe o mal para o meio de nós. Será
que, se vocês não tivessem vindo ter connosco como compradores, nós nos
teríamos vendido uns aos outros? A avidez com que procuramos as vossas
mercadorias sedutoras, o gosto que temos pela vossa aguardente, faz com que um
irmão não possa ter confiança no seu irmão, um amigo no seu amigo, e às vezes
nem mesmo um pai possa ter confiança no seu filho. Nós tínhamos aprendido com
os nossos pais que só os malfeitores que tivessem cometido três assassínios
eram lapidados ou afogados, mas a punição para os delitos ordinários era que o
faltoso devia trazer, durante um, dois ou três dias seguidos, um grande molho de
lenha a casa do ofendido e pedir-lhe perdão de joelhos.
[…]
Outrora, quando sucedia alguma coisa importante, pedíamos conselho ao
nosso feiticeiro, seguíamos o seu conselho e sentíamo-nos bem com isso.
Um texto deste tipo, nunca saberemos se reflecte o pensamento do alegado
autor do testemunho ou o daquele que o recolheu. De qualquer modo, são
levantadas questões importantes a que teremos de voltar. Uma, a da atracção das
comunidades africanas pelas mercadorias de origem europeia (produtos de
prestígio ou bens de consumo até então desconhecidos) e de como isso pôde
alterar algumas das relações sociais preexistentes. Outra, a da insegurança
provocada pela escravização arbitrária por parte dos poderosos. E, também, a
deterioração das relações de vizinhança (neste caso com os povos do interior) e
a percepção da quebra demográfica. Sobrepondo-se a tudo isso, há, porém, a
pergunta de sempre: será que, sem a chegada dos europeus, africanos teriam vendido africanos a outros africanos?» In
Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e Traficantes no império português, O
Comércio Negreiro no Atlântico durante os séculos XV a XIX, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-478-9.
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