domingo, 9 de fevereiro de 2014

O Comércio Negreiro. Escravos e Traficantes no império português. Séculos XV a XIX Arlindo M. Caldeira. «Sois vós, vós os brancos, quem trouxe o mal para o meio de nós. Será que, se vocês não tivessem vindo ter connosco como compradores, nós nos teríamos vendido uns aos outros?»

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Tráfico e Tráficos. Os navios negreiros não param de passar
«(…) O compromisso para a erradicação da escravidão foi reforçado no ano seguinte, 1957, pela adopção pela organização Internacional do Trabalho (OIT) da Convenção sobre a Abolição do Trabalho Forçado. No mesmo sentido, a OIT adoptara, em 1999, como recomendação a todos os Estados-membros, a convenção para proibição das piores formas de trabalho infantil e a acção imediata para a sua eliminação Finalmente, em 2000, a Assembleia Geral da ONU aprovou o Protocolo de prevenção, supressão e punição do tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças, no âmbito do combate ao crime organizado transnacional. Nesse mesmo ano, no dia internacional para abolição da escravatura, em 2 de Dezembro do ano 2000, estávamos quase a entrar no século XXI, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, que no ano seguinte receberia o Prémio Nobel da Paz, fazia assim o ponto da situação:

Há mais de 50 anos, foi redigido o artigo 4.º da Declaração universal dos Direitos Humanos, afirmando que ninguém será mantido em escravidão ou em servidão e que a escravatura e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. Apesar de todos os esforços realizados desde então para abolir a escravatura em todas as suas formas, a escravatura não desapareceu. Continua a rer uma realidade e está mesmo a voltar a crescer em algumas partes do Mundo. A escravatura é uma afronta a todos os homens e todas as mulheres livres, na verdade a toda a Humanidade. Novas formas de escravidão, tais como a exploração de crianças para fins sexuais, o trabalho infantil, o trabalho forçado, a servidão, o trabalho de imigrantes ilegais, o trabalho familiar, a escravatura com fins rituais ou religiosos e o tráfico de seres humanos, colocam outros tantos desafios que temos de enfrentar com toda a urgência.
[…]

Além disso, é urgente promulgar leis e tomar medidas para garantir que as novas formas de exploração e de opressão a que estamos a assistir não se transformam, a prazo, em escravatura. Mas é também urgente garantir que aqueles que se dedicam a práticas esclavagistas serão identificados e impedidos de fazer o mal.

A História anda devagar quando se trata de garantir o respeito pelos direitos humanos. Ignorar isso é quase tão perigoso como pensarmos que nada muda. E nem a existência de escravatura ao longo dos tempos pode justificar a escravatura nos dias de hoje, nem a existência da escravatura contemporânea pode servir para desvalorizar a dimensão e a violência da escravatura no passado. Pelo contrário, o conhecimento histórico pode e deve ser um tónico poderoso para o nosso sobressalto cívico, sempre que a dignidade humana é posta em causa.

A componente africana do tráfico
Em meados do século XVIII, um velho chefe africano da Costa da Mina, talvez antepassado longínquo de Kofi Annan, que nasceu no Gana, comentava para um mercador de escravos dinamarquês:

Sois vós, vós os brancos, quem trouxe o mal para o meio de nós. Será que, se vocês não tivessem vindo ter connosco como compradores, nós nos teríamos vendido uns aos outros? A avidez com que procuramos as vossas mercadorias sedutoras, o gosto que temos pela vossa aguardente, faz com que um irmão não possa ter confiança no seu irmão, um amigo no seu amigo, e às vezes nem mesmo um pai possa ter confiança no seu filho. Nós tínhamos aprendido com os nossos pais que só os malfeitores que tivessem cometido três assassínios eram lapidados ou afogados, mas a punição para os delitos ordinários era que o faltoso devia trazer, durante um, dois ou três dias seguidos, um grande molho de lenha a casa do ofendido e pedir-lhe perdão de joelhos.
[…]

Outrora, quando sucedia alguma coisa importante, pedíamos conselho ao nosso feiticeiro, seguíamos o seu conselho e sentíamo-nos bem com isso.

Um texto deste tipo, nunca saberemos se reflecte o pensamento do alegado autor do testemunho ou o daquele que o recolheu. De qualquer modo, são levantadas questões importantes a que teremos de voltar. Uma, a da atracção das comunidades africanas pelas mercadorias de origem europeia (produtos de prestígio ou bens de consumo até então desconhecidos) e de como isso pôde alterar algumas das relações sociais preexistentes. Outra, a da insegurança provocada pela escravização arbitrária por parte dos poderosos. E, também, a deterioração das relações de vizinhança (neste caso com os povos do interior) e a percepção da quebra demográfica. Sobrepondo-se a tudo isso, há, porém, a pergunta de sempre: será que, sem a chegada dos europeus, africanos teriam vendido africanos a outros africanos?» In Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e Traficantes no império português, O Comércio Negreiro no Atlântico durante os séculos XV a XIX, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-478-9.

Cortesia ELivros/JDACT