Perseguindo sombras
«Não é fácil traçar, mesmo que de forma muito sumária, o percurso biográfico
do célebre Geraldo Geraldes, O Sem-Pavor. Apesar de se encontrar referido
em diversas fontes narrativas coevas, tanto cristãs quanto muçulmanas, as
informações disponíveis acerca desta personagem são extremamente lacónicas, por
vezes confusas e frequentemente omissas relativamente a muitos aspectos da sua
vida, o que certamente contribuiu, por um lado, para alimentar a sua faceta
lendária, mas, ao mesmo tempo, para o rodear de uma quase impenetrável aura de
dúvida e de controvérsia. Reconstituir a sua biografia é, por isso, um
exercício que constantemente resvala para o plano das conjecturas e das hipóteses.
E as primeiras dificuldades surgem-nos assim que procuramos conhecer as suas
origens e os primeiros anos de vida, questões relativamente às quais as
crónicas são totalmente silenciosas. Se bem que muitas outras teorias tenham já
sido equacionadas, talvez a hipótese mais verosímil seja a que defende Armando
Sousa Pereira, autor do mais recente e um dos mais empolgantes estudos sobre
esta figura, segundo a qual Geraldo
terá nascido em meados do século XII, talvez entre as décadas de 1130-1140,
isto é, numa altura em que governava já Afonso Henriques, em território do
ainda jovem reino português. Esta é uma hipótese assente no facto de algumas
fontes muçulmanas o apelidarem, aliás, tal como o fazem relativamente a Afonso
Henriques, de galego, uma designação que não remete necessariamente para o
território da Galiza, mas sim, de uma forma vaga e imprecisa, para os vastos
territórios situados a norte do Tejo. Era dessas regiões que partiam as grandes
expedições depredatórias lançadas pelos portugueses contra o Sul muçulmano e,
simultaneamente, era para aí que confluíam os exércitos do Islão durante o
mesmo tipo de acções ofensivas, tão características da guerra na Idade Média e,
em particular, do período da Reconquista.
Estas manobras de desgaste destinadas a privar o inimigo dos seus recursos
materiais eram praticadas por ambos os lados em conflito e tanto perseguiam
objectivos militares, como económicos. Com efeito, existia uma verdadeira
economia de guerra assente no saque, na pilhagem e, acima de tudo, na obtenção
de cativos, sem dúvida uma das suas principais fontes de rendimento. Vendê-los
como escravos, aproveitar a sua mão-de-obra ou negociar a sua libertação
mediante o pagamento de um resgate ou através de uma troca de prisioneiros era
seguramente mais rentável que, pura e simplesmente, matá-los. É precisamente
neste quadro de constantes razias e acções de pilhagem que, ainda segundo
aquele autor, talvez encontremos o motivo da passagem de Geraldo do Norte cristão para o Sul muçulmano. Não é, pois, difícil
imaginá-lo feito cativo, talvez ainda em criança, como era comum, durante uma
das incursões como a que, em 1144,
levou as hostes almorávidas quase até às portas de Coimbra, ou a que, onze anos
depois, conduziu as forças almóadas desde Sevilha até junto do castelo beirão
de Trancoso.
Mais tarde, já com um razoável conhecimento da língua árabe e não tendo
nunca sido resgatado, terá possivelmente ingressado, na condição de escravo,
nas fileiras do exército de algum comandante militar, uma experiência que lhe
terá valido a aprendizagem de muitos dos seus conhecimentos guerreiros, mas
também das tácticas dos exércitos muçulmanos e das suas principais
características, dos seus pontos fortes e principais fraquezas, uma hipótese
que nos parece fazer ainda mais sentido se observada à luz das inúmeras vezes
que as crónicas muçulmanas o apelidam de traidor.
As interrogações avolumam-se quando tentamos perceber os contornos dessa alegada
traição, isto é, da sua
desvinculação a esta realidade. Terá Geraldo
logrado escapar dos seus captores, ou porventura conseguido obter a liberdade
graças a uma conversão, real ou fictícia, ao Islão? Ou teria sido resgatado no âmbito de uma operação
militar em tudo semelhante àquela que, anos antes, o terá conduzido ao cativeiro? Não o sabemos e muito menos
conhecemos a cronologia ou os palcos de todos estes episódios. Ou seja, até ao
ano de 1162 todo o percurso daquele
que viria a ser conhecido como O Sem-Pavor
não passa de mera conjectura. Verosímil, mas ainda assim uma sucessão de
hipóteses praticamente impossíveis de comprovar. Porém, a partir daquela data, embora
sem grande nitidez, começam a surgir algumas pistas, as primeiras das quais são
as que dão conta, nesse mesmo ano, da conquista de Beja.
O assalto a Beja
Baptizada Pax Julia pelos romanos, a cidade parece ter tombado, segundo
as fontes cristãs e muçulmanas, na noite de 30 de Novembro para 1 de
Dezembro de 1162, na sequência
de uma expedição levada a cabo por forças oriundas de Coimbra. Composta na sua
maioria por cavaleiros-vilãos, ou seja, não-nobres, e comandada por
Fernão Gonçalves, contou ainda com o importante contributo de contingentes mobilizados
e/ou reunidos em Santarém, localidade onde a coluna de marcha terá feito uma pausa
mais demorada antes de cruzar o Tejo, que então constituía a fronteira,
e de avançar pelas planícies alentejanas». In Miguel Gomes Martins, Guerreiros
Medievais Portugueses, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-626-486-4.
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