Goa
«(…) Se os habitantes das Novas Conquistas tentassem em tempo algum emancipar-se,
por certo que ninguém taxaria esse acto de atentado contra a nossa soberania,
porque não temos o direito de exigir vassalagem àqueles que nada nos devem; e, contudo,
essa gente rude conserva um religioso respeito e até amor pelo nome português.
Guerreiros e aventureiros como nós, quase se nos ligam pela afinidade de génio
e de carácter. O exército da Índia era na maior parte formado dessa gente, e
eles nunca desmentiram a tradicional coragem e lealdade, quer nas companhias de
Satary, quer nos sertões da Zambézia. Quem há na Índia, se exceptuarmos os portugueses
e uma grande parte dos charadós, que se avantaje em firmeza
de carácter, em lealdade e bizarra hombridade aos nossos Sar-Dessays e Ranes? Encastelados nos seus
palácios, cercados dos seus galhardos sypaes, os Dessays das Novas
Conquistas são ainda os restos desses tempos em que os altivos rajás representavam
os nossos poderosos barões.
Nas Novas Conquistas, ao lado dos habitantes generosos e aguerridos, a Natureza
também se reveste do quer que é de audaz e febril, como notámos. A arequeira
parece preencher o ideal ténue e vaporoso do apático filho do Ganges. Direita,
esguia, de uma cor pardacenta, quase nua como a castidade, ergue a cabeça
melancólica e copada: é um brâmane nu e pensativo. Um regato de límpida água corre-lhe
aos pés; os ramos caem em preguiçosas curvas, como os braços da amante, e os
cachos de frutas, de cor alaranjada, pendentes do alto, quais brincos ornando a
face da mulher, dão-nos a imagem da lânguida baiadeira. O arecal é o bosque sagrado da Índia. A arequeira
é a pompa, o luxo, a alvorada oriental, assim como a palmeira representa os
tempos heróicos, a antiguidade quase fabulosa desse povo-mito. Irmã daquela,
levanta-se esta, esbelta e triunfante. Saltam-lhe aos ventos douradas pelo sol
as palmas, como a cabeleira fulva de um herói germano; o tronco range qual mastro
de um navio açoitado pela tempestade e balouça, como os antigos atletas do
circo, em curvas audaciosas. As palmas varridas pelo terral espalham um cício
igual ao da flâmula agitada pelo vento. Se um vendaval acoita o palmar,
como é então belo ver a luta de equilíbrio em que se empenham esses gigantes. A
palmeira, ao princípio, oscila lentamente, recurvando-se rápido, nervosa, à
proporção que o vento cresce. Cabeceiam as comas entrelaçando-se umas com as
outras, e as palmas batidas, resvalam num choque de armas. Em doida fúria são
arremessados para o espaço os cocos e as ollas, que juncam o chão de
destroços. A água da chuva corre em borbotões pelo tronco abaixo e as palmas,
acalmada a tempestade, erguem-se sujas e esfarrapadas.
Num dia de Maio quente e pesado, o sol a dardejar
implacável sobre as cabeças alagadas em suor, a palmeira é uma tenda de Deus
para o pobre indiano. A água de coco é o gelo naqueles climas. O boiá
fatigado e a escorrer em suor apanha do chão uma palma, arranca dela uma folha
e enxuga o corpo ou antes raspa-o como com fio de uma faca; depois, ajudado dos
dedos dos pés; tece uma espécie de esteira, estende-a à sombra e dorme, apenas
descansa o corpo sobre o frio leito. O boiá dorme com tanta facilidade como
bebe urraca
por todas as tavernas que depara no seu trânsito. Quem andou pela Índia deve
ter visto como em dia de calmaria os boiás e os marinheiros, deitados
sobre as lajes do passeio e nos degraus do Cais das Colunas, de braços
estendidos, o rosto coberto por um lenço de chita, dormem debaixo daquele céu
ardente, com uma placidez e um bem-estar inexprimíveis. Quando se levantam,
vê-se desenhada no chão a figura humana». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna,
Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN
978-989-719-001-8.
Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!
Cortesia de Ésquilo/JDACT