Resumo
«Este artigo aborda as conexões que se estabelecem no século XVIII
entre a guerra e a diplomacia, de um lado, e, de outro, a cartografia, no
contexto da Guerra da Sucessão Espanhola (1702-1714) e do Tratado de
Utrecht que veio pôr fim aos diferendos surgidos. Toma como ponto de
partida a colaboração estabelecida entre o diplomata português Luís da Cunha e
o geógrafo francês Jean Baptiste Bourguignon D’Anville, para a elaboração da
Carte de l’Amérique méridionale, de 1748,
com o objectivo de nortear as negociações de fronteiras entre Espanha e
Portugal de seus territórios na América».
O
mapa e seus autores
«Em
Madrid caía a noite de 18 de Agosto de 1747
quando um apressado viajante adentrou os muros da cidade. Estava empoeirado e
cansado depois de uma viagem acelerada desde Paris, pois o seu encargo era
levar com rapidez a correspondência de Luís da Cunha, famoso embaixador de
Portugal que, na primeira metade do século XVIII, servira nas mais diversas
cortes europeias, e que então ocupava o posto na França. O correio trazia as
cartas por ele enviadas ao visconde de Vila Nova de Cerveira, embaixador
português na Espanha. Junto a estas, bem preso às costas, ainda trazia, com o
maior cuidado, como antes de partir lhe advertira Luís da Cunha, um canudo de
papelão. No seu interior, estava um mapa manuscrito da América do Sul, que
vinha acompanhado de uma carta, ambos de autoria de Jean-Baptiste Bourguignon
d’Anville, então geógrafo do rei da França. Tratava-se de um manuscrito da Carte de l’Amérique Méridionale,
produzida para o uso privado do duque de Orleans, que retratava o continente de
forma elaborada e detalhada, e que seria impressa em 1748, tendo sofrido, a partir desse ano, sucessivas reimpressões,
que acrescentaram pequenas modificações. Esta carta havia sido produzida em
estreita colaboração com o embaixador Luís da Cunha.
Luís
da Cunha foi figura emblemática da política interna e externa de Portugal na
primeira metade do século XVIII, sob o reinado de João V. A serviço da Coroa,
viveu quase toda a sua vida no estrangeiro, servindo como embaixador nas
grandes cortes da Europa e participando, directa ou indirectamente, dos grandes
acordos diplomáticos de seu tempo. Era um homem instruído, grande observador e
crítico da realidade, advogando uma transformação na inserção de Portugal na
orquestra política das nações europeias e também na sua relação com suas
conquistas ultramarinas, especialmente com o Brasil. Apesar de distante do
reino, o embaixador manteve intensa e ininterrupta correspondência com os
principais artífices e pilares da política portuguesa de seu tempo,
municiando-os com seus conselhos. A partir de sua visão de mundo e acreditando
ser um oráculo de João V, buscou fundar toda uma agenda a ser seguida por
Portugal nos anos vindouros. Entre tantos temas, seus escritos propunham um
redimensionamento do papel do Brasil no interior do império. Parte dessa tarefa
significava ter um melhor conhecimento da geografia dessa conquista e, para
isso, contribuiu para a produção de mapas mais precisos. É neste contexto que
se insere a Carte de l’Amérique
méridionale.
Em
1802, no elogio escrito à Notice des Ouvrages de M. D´Anville,
o barão Joseph Dacier afirmou que D’Anville era reconhecido pelos savants
e viajantes de seu tempo, como oráculo da Geografia. Atestando sua enorme
contribuição, a Notice atribuía
como de sua autoria mais de 211 mapas manuscritos e impressos e
23 obras sobre essa ciência. Parte significativa da comunidade intelectual,
para além da França e de seu próprio tempo, ressaltou o importante papel que
desempenhou nesse campo de conhecimento. Condorcet (1743-1794)
foi um dos que afirmou que todas as
nações concordam em considerá-lo o primeiro geógrafo da Europa. D’Anville era
um geógrafo de gabinete. Isto é, nem imprimia mapas, nem realizava as medições
dos terrenos que representava em suas cartas. Seu papel na rede de
profissionais envolvidos com a feitura dos mapas era a de compilar
todas as informações geográficas disponíveis, colectadas por outros, submetê-las à sua
crítica severa, e, a partir delas, traçar a carta que seria, então, impressa e
comercializada por terceiros. Foi na Carte de l’Amérique Méridionale que estes dois
oráculos, Luís da Cunha, mestre na arte da política e da
diplomacia, e D’Anville, hábil no exercício da geografia,
se
encontraram. O geógrafo queria que seu mapa contribuísse para o maior
conhecimento do território sul-americano e o embaixador pretendia
que servisse para subsidiar as negociações diplomáticas, em curso em Madrid, com vistas a definir as fronteiras entre
Portugal e Espanha na América, que se encontravam em litígio desde a Guerra da Sucessão Espanhola.
Tendo esse mapa como ponto de partida e de chegada, este artigo busca discutir
as vinculações entre, de um lado, a cartografia e, de outro, a guerra e a
diplomacia, tendo como pano de fundo a Guerra da Sucessão Espanhola».
In
Júnia Ferreira Furtado, Guerra,
Diplomacia e mapas, a Guerra da Sucessão Espanhola, o
Tratado
de Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville, revista Topoi, v. 12, nº 23, 2011.
Cortesia
de Topoi/JDACT