Guerra e cartografia
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As forças militares chefiadas pelo marquês, que mobilizaram um efectivo de
30.000 soldados entre portugueses, holandeses e ingleses, depois de reassegurar
as praças portuguesas nas Beiras, avançaram sobre o forte de Sarça, e ocuparam
a imponente fortaleza de Alcântara, em abril de 1706. A entrada em Ciudad Rodrigo, que ocorreu a 26 de Maio, foi
determinante na mudança da direcção da guerra: A campanha de 1706 foi triunfal para os
portugueses que, sob o comando do marquês das Minas, avançaram pelo território
espanhol, entrando pela actual província de Cáceres em Abril, sucessivamente
conquistando Alcântara, Plasencia, Almaraz, recuando depois até Coria, seguindo
daí até Ciudad Rodrigo. A tomada dessa praça foi o ponto de partida
para a conquista de Madrid, o que ocorreu em 28 de Junho. Na capital, o
arquiduque Carlos foi simbolicamente proclamado rei pelos invasores. Orientado
no sentido leste-oeste, o mapa de D’Anville retrata, como era usual na
cartografia militar, o teatro da guerra em torno de Almeida, na
fronteira, onde se desenrolaram importantes operações. Dispõe as fortificações
espalhadas pelo território (Alcântara, Zarca, Salvaterra, Segura, Coria, Monsanto,
Almeida), bem como o relevo e os principais acidentes geográficos (destacam-se
os rios Erxas, Alagon, Águeda, Azaba, e a Serra da Gata), além das estradas
e núcleos urbanos e, finalmente, as colunas, os destacamentos e os acampamentos
de ambas as tropas que se deslocam pelo território. É visível o recuo das
tropas espanholas que, em Setembro de 1705,
se encontravam às portas de Almeida e que no 1º. de Outubro, haviam recuado até
Espeja, já em território espanhol. Também é possível observar os contingentes
portugueses que se aproximam de Ciudad Rodrigo e organizam o cerco em torno da
imponente fortaleza que protegia a cidade, junto ao rio Águeda. Trata-se, provavelmente,
de uma ainda desconhecida colaboração entre D’Anville e Luís Cunha
que tem o objectivo claro não só de mapear os combates, mas de enaltecer as
habilidades militares do marquês das Minas e o poderio bélico de Portugal na
guerra, o que se torna evidente pelo momento escolhido para ser retratado: exactamente
quando suas tropas adentram o território espanhol.
Não
se pode deixar de atentar que o mapa
não apresenta traçada a linha de limite entre as duas nações, fazendo parecer,
como era o desejo expansionista da Coroa Portuguesa, que todo esse território
fronteiriço se encontrava sob seu domínio, a partir do avanço de suas tropas, o
que poderia justificar uma futura negociação de fronteiras. E, de facto,
essa pretensão ancorava-se no tratado assinado com a Inglaterra que prometera a
futura anexação a Portugal de territórios espanhóis após a guerra. Como não se
sabe a data de produção desse mapa, o mais provável é que ele tenha sido
elaborado já na vigência do Tratado de
Utrecht que pôs fim ao conflito. O documento estabelecia que
territórios na Europa poderiam ser trocados pela Colónia do Sacramento
e, nesse caso, era interessante para Portugal também demonstrar o seu domínio
sobre esta porção fronteiriça do território espanhol, em caso de ser necessário
apontar um equivalente de troca. O mais provável é que o mapa tenha sido
produzido por volta do ano de 1724,
quando D’Anville passou a colaborar com Luís Cunha. Em 1723, estando em Paris, o embaixador
recebeu ordens de Portugal para, sob a orientação do marquês de Abrantes,
reunir tudo que dissesse respeito à organização das tropas francesas e seus
uniformes e ninguém melhor que Hermand, engenheiro chefe do rei da França, para
lhe assessorar nessa empreitada. Conseguiu em Outubro que o duque de Orléans,
então regente, autorizasse que o mesmo se pusesse a serviço de João V, passando
os seus desenhos das tropas, uniformes e armamentos franceses para que fossem
copiados. Por ordem do regente, Hermand interrompeu o trabalho que fazia de
compilação de documentos sobre assuntos militares para serem usados na educação
do delfim (depois Luís XV), para então se dedicar às encomendas do rei
de Portugal. Na obra que fazia para o futuro rei contava com a ajuda de
D’Anville, pois para deixá-lo a par das manobras militares, os mapas eram
ferramentas indispensáveis para dar a ver as batalhas, os movimentos das
tropas, a situação das fortificações. Guerra,
geografia e cartografia eram temas constantemente interligados; é
provável, portanto, que, D’Anville se dedicasse, nesse contexto, a
desenhar, a pedido do embaixador, as manobras portuguesas em torno de Almeida e
Ciudad Rodrigo.
Na correspondência de Luís Cunha existem outros exemplos de como
os mapas podiam ser veículos capazes de materializar, aos olhares distantes, o
teatro das guerras e a esse uso da cartografia o embaixador não deixou de estar
atento. Em suas diversas embaixadas, para que em Portugal se pudesse ter
notícias mais claras dos campos onde se travavam as principais batalhas pela
Europa, ficava atento a mapas que pudessem auxiliar nesse fim. Geografia
é palavra grega que significa descrever, desenhar ou pintar a terra. Ambíguo, o
verbo significava simultaneamente descrever, desenhar e pintar. Portanto, mapas
eram e são uma forma de pintura do mundo. No ano de 1740, quando Frederico II da Prússia
invadiu a Silésia, no contexto da Guerra da Sucessão Austríaca (1740-1748),
Luís Cunha enviou ao reino um novo
mapa da guerra de Silésia. Dessa forma as autoridades portuguesas
podiam acompanhar o que se passava com as tropas prussianas e austríacas na
região. Porém, sabendo do poder que os mapas tinham para desvirtuar a
realidade, advertiu que as plantas das
praças que o geógrafo lhe ajuntou não são tão fortes nem tão regulares como ele
de sua cabeça as quis fazer». In Júnia Ferreira Furtado, Guerra, Diplomacia
e mapas, A guerra da Sucessão Espanhola, O Tratado de Utrecht e a América
Portuguesa na cartografia de D’Anville, revista Topoi, v,. 12, nº 23, 2011.
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