«Uma das feições mais salientes da nossa vida artística dos anos 60 é o
regresso da poesia de grande publico à sua relação conjugal com a música. Essa reconciliação
entre a música e a poesia de intervenção cívica integra-se então numa voga
internacional de balada democrática e, entre nós, está em estreita relação com
os movimentos estudantis que marcaram o início e o final desse decénio de 60. É
certo que a tradição de poetar directamente para o violão vinha já de João de
Deus e até do árcade de origem brasiIeira Caldas Barbosa, que se auto-alcunhou
de Calda
de Açucár. É certo que Augusto Gil e António Nobre escreveram quadras
vocacionadas para o canto; e, quer o fado lisboeta, quer o fado coimbrão estão
ligados a uma vária autoria poética a que conferem, por vezes, uma espécie de
consagração pelo anonimato. Mas a poesia de resistência dos anos 60 deriva mais
directamente daquela que, pela mão por exemplo de Carlos de Oliveira e Gomes
Ferreira, assinalou o primeiro alento de luta política democrática do final da II
Guerra Mundial. Mais tarde, após o 25 de Abril, surgirão realizações de uma
poesia não apenas unida à música vocal e instrumental, mas ainda ao teatro, ao
espectáculo em geral, e, em suma, àquilo que poderíamos chamar a arte total em
acção.
Permita-se-me lembrar que a palavra de étimo grego drama designava, na
origem, precisamente isto, poesia em acção, e que a palavra de
étimo latino actor equivale originariamente a agente, pois as peças de teatro
eram, em latim, concebidas de início como res gerendae, o que também se pode
traduzir por poesia em acção. Adriano
Correia de Oliveira é um poeta em acção, um poeta que tende para o homem
responsável e total. A sua canção tem, sem duvida, o seu ponto de partida mais
reconhecível no fado estudantil coimbrão, lírico, predominantemente elegíaco,
com uma linha melódica apoiada na harmonização à guitarra e/ou viola, e um páthos
tipicamente romântico nos portamentos que prolongam ad libitum as sílabas tónicas
das palavras de efeito. Mas os dois grandes temas da juventude académica de
então eram as guerras injustas e dementadas contra os povos colonizados e
aquele conjunto de aspirações que se exprime pela bela palavra liberdade. O soldado que vai à guerra e
volta num caixão de pinho é a projecção de um destino provável para esses
jovens que, em termos cantados pelo nosso trovador, fazem da capa negra a bandeira da
liberdade. Para alguns, essa liberdade cingia-se às tradições liberais
e à oposição a uma guerra que, no nosso tempo, parecia já, evidentemente
injusta, por uma razão que os antigos liberais, paradoxalmente, ainda não eram
capazes de ver. Mas Adriano Correia de
Oliveira esteve desde cedo e até à morte com aqueles para quem a liberdade
se concretiza em metas como a abolição da exploração pela mais-valia, como a
libertação da terra latifundiária, como a realização programática e até constitucional
das melhores
virtualidades humanas, individuais e colectivas, e como a autêntica autodeterminação
nacional, na economia e também na cultura.
E é para cantar todas estas liberdades, formais e reais, que Adriano mobiliza símbolos que vêm de
toda a tradição poética portuguesa: são as barcas que já para a guerra levavam,
à amiga, o amigo das cantigas trovadorescas de Martim Codax; são as águas,
que constituem o arquétipo das almas apaixonadamente livres da Menína
e Moça de Bernardim; e é o vento, símbolo romântico, e, entre nós,
herculaniano, da paixão e da revolta. E nos poemas cantados por Adriano são ainda bem legíveis as
tradições trágico-marítimas de cinco séculos, são-no traços satíricos populares
da Restauração antifilipina, contra a integração de Portugal na grande Europa reaccionária
de então dos Habsburgos, são-no legíveis motes dos liberais cercados no Porto
em 1832, da insurreição patuleia e
da propaganda republicana. E, para além destas vozes históricas, há timbres vocais
específicos que assinalam regiões várias da nossa sensibilidade popular». In Óscar
Lopes, Homenagem a Adriano Correia de Oliveira, Uma Arte de Música e Outros
Ensaios, Oficina Musical, Porto, 1986.
Cortesia de OMusical/JDACT