A prostituição e a
cidade: problemas públicos e identidade social
«(…) Tal medida prenunciava ser
o Mangue o lugar ideal para a localização do meretrício carioca, contribuindo
para a definição dos espaços morais da cidade e, pela óptica higienista de
então, também para o controle da sífilis e de outras doenças venéreas que
assombravam a vida da população no início do século XX. Junto a isso, a grande
mobilidade dos habitantes desta área era um dos distintivos que davam à Cidade
Nova o caráter de área natural do baixo meretrício no Rio de Janeiro.
Entretanto, o inexorável processo da expansão urbana pouco a pouco confinou e
reduziu os seus domínios. Em 1945, a
construção da Avenida Presidente Vargas pôs abaixo cerca de quinhentos
edifícios da região, entre eles quatro igrejas, um mercado, a sede da
prefeitura e muitas casas onde funcionavam os bordéis, espalhando, entre os
moradores da cidade, o medo de que a prostituição proliferasse para
outros bairros. Em 1954, iniciou-se
a experiência conhecida como República do Mangue, termo cunhado pelos
policiais da Delegacia de Costumes e Diversões (DCD) com o objectivo de fichar
as prostitutas daquela área para que fossem exercidos simultaneamente os
controles médico e policial. Em 1967,
a visita da rainha Elizabeth II e de sua comitiva tornaria o casario
parcialmente invisível para aqueles que cruzassem a Avenida Presidente Vargas.
A ordem dos militares era
esconder o Mangue com tapumes e, com isto, traçar, finalmente, os limites da zona. Em 1970, o Jornal do Brasil chegou a anunciar o fim do Mangue. Mais de trinta casas estavam sendo
desapropriadas e outras tantas deveriam passar pelo mesmo processo, pois, desde
o início, a década de 1970 seria marcada pelas obras de
construção do metropolitano e do Centro Administrativo São Sebastião (CASS),
sede da Prefeitura do Rio de Janeiro (a população da cidade prestou uma anti homenagem
à nova sede do governo municipal, apelidando-o de Piranhão, uma
explícita alusão à alcunha popular de prostituta e à menção que faz à
voracidade carnívora do peixe amazónico; na cidade, todos conhecem a sede da
prefeitura pelo nome de Piranhão, e mesmo os seus funcionários se
referem ao local de trabalho utilizando este nome; mais recentemente, um prédio
anexo foi construído e, novamente, a população lembrou a antiga área dos
bordéis, dando-lhe a alcunha de cafetão).
Com as obras, a área abrangida pelo CASS não mais deixava espaço para um novo
deslocamento das prostitutas. Havia, porém, em um pequeno trecho fronteiriço
entre a Cidade Nova e o bairro do Estácio, uma travessa com casas, próxima ao
sítio reurbanizado e à estação de metro, onde os bordéis seriam
reinstalados, pela última vez naquele bairro, em 1979. Em seu pórtico lia-se Vila
Mimosa. E a vila, anteriormente ocupada por famílias, viria acolher a
escória, os últimos habitantes de uma área já totalmente desmantelada pela
renovação urbana. Nas casas da Vila
Mimosa, prostitutas e cafetinas preservariam seus negócios e um estilo de
gerir a prostituição, não sem sofrerem muitas novas ameaças. Porém, no decorrer
desse social drama, transformariam o lugar e suas actividades em um
símbolo de resistência da Zona do Mangue e do direito à cidade.
Os
estudos de ecologia urbana desenvolvidos pelos sociólogos de Chicago buscaram
compreender a cidade e seus problemas através da análise dos processos de
expansão urbana. Num
artigo de 1925, Ernest Burgess
ilustrou o zoneamento da cidade e seu processo de expansão com a representação
de círculos concêntricos, mostrando com isso os sucessivos processos da
expansão. Assim, em Chicago a prostituição se situava na zona de Loop,
também chamada Zona Central de Comércio; na zona de transição, ou de
deterioração e na zona residencial. Transpondo o seu esquema para a cidade do Rio de
Janeiro, vemos que aqui o mesmo ocorria: no centro de comércio, onde se
situam as praças Tiradentes e Campo de Santana, e em cujo prolongamento também
se encontra a praça Mauá, junto ao cais do porto, o cenário é marcado pela
presença das prostitutas de rua, que fazem o trottoir e frequentam bares,
clubes e cinemas cuja programação se destina à exibição de filmes ou espectáculos
eróticos. A prostituição de bordel, também chamada prostituição
localizada,
se concentra na zona de transição. Nesta podemos classificar a Vila Mimosa, último reduto da
prostituição na região central do Rio, e que, devido a renovação urbana,
foi reinventada em um bairro
contíguo pelos seus antigos proprietários. Um tipo de prostituição mais
discreta, pois confinada aos apartamentos e sustentada por um público de
maior poder aquisitivo. Ficaria
reservada, por fim, às áreas residenciais da cidade. Nesta modalidade, o bairro
de Copacabana se sobressai na geografia moral carioca». In Soraya
Silveira Simões, Identidade e política.
A prostituição e o reconhecimento de um ‘métier’
no Brasil, Revista de Antropologia Social dos Alunos do
PPGAS-UFSCar, v.2, n.1, 2010.
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