Uma Arte de Música e Outros Ensaios.
Palavras de Auto-Explicação
«(…) Quando se verifica a extraordinária quantidade de ambiguidades ou
contradições que nós resolvemos no mais simples acto de comunicação
razoavelmente logrado, é difícil conceber que a poesia se caracterize pela simples
abertura de um texto à ambiguidade e à contradição, sem que essa abertura
contenha um desafio à síntese possível e competentemente unívoca de cada aqui e
agora. De qualquer modo, aproveito para declarar mais uma vez que não perfilho
nem a estética, nem a filosofia, nem a política da ambiguidade. Por muito
confusa e indecisa que seja a nossa experiência humana, palavras como eu e nós carregam toda a evidência de uma complexa história unificada de
assimilação ou acomodação, e palavras como aqui
e agora, ligam-se à evidência dos enquadramentos,
dentro dos quais se nos impõe fazer qualquer coisa, aqui e agora entre um
passado que está ainda presente sob
a forma de resultados e representações, e um futuro evidenciado por um conjunto
presente de expectativas a ponderar,
ou de alternativas a escolher. Um texto é, assim, uma condensação de
experiência social activa. Todavia
ler ou escrever um texto denso é passar por uma vivência de profunda solidão,
porque o texto poético, fictivo, ou radicalmente meditativo, suspende o dispositivo
quotidiano da comunicação: é uma evocação, ou Gedankenexperiment, de mundos possíveis, organizados a
partir de fragmentos do mundo mais óbvio, e ligados a hipóteses de uma
alternativa mais compreensível ou então mais desejável. Ler ou escrever um
texto denso é ainda, por vezes, a procura de um rosto, ou de uma voz, tanto
mais voláteis quanto mais importaria apreendê-los. E, no entanto, basta uma
pequena e interessada discussão, a dois ou a vários, desse texto, para se
verificar que o destinatário que nós pressentíramos a sós afinal não existe, e
que uma larga margem das eventuais adesões ao texto surge por coincidência ou
por equívoco.
O mais dramático, mas também o mais interessante de tudo, é que o autor
acaba por se esquecer de muitas das suas intenções solitárias, acaba por
reconhecer a importância de muitas das leituras imprevistas, acaba por
reconhecer que o próprio texto se gerou, solitariamente, de muitas
coincidências e equívocos análogos, e acaba por entrar no único jogo transitivo
possível, que aliás não consiste em seguir, precisamente, a deriva da moda
comercial literária, ou a da conjuntura ideológica dominante, mas aquela fugidia
deriva que, com o contributo do autor e exegeta, virá a prevalecer a mais longo
prazo. E, todavia, insisto, há uma espécie de solidão que é necessária e que
está polifonicamente presente nos próprios momentos em que nos dispomos a acompanhar
as intuições mais imprevistas dos interlocutores reais. Há uma espécie de
solidão tão necessária como aquela solidão em que acordamos para a verdade
trágica da nossa condenação à morte como indivíduos e como espécie, em que
acordamos (os que acordamos) para a evidência de todo o tipo impune de
violência, exploração, estupidez e sufocação das melhores virtualidades
humanas, sobretudo hoje, em que muitas dessas virtualidades já são viáveis, e
sabendo-se que a sua satisfação viria afinal qualificar as nossas mais altas
exigências perante a vida. E é da raiz dessa compenetrada solidão que sentimos
aquele sim, de reconciliação apesar
de tudo, que vem de certos textos, de certas curvas musicais, de certos traços
plásticos, ou dos rostos que mais temos amado.
Acostumado a esta pulsação entre a necessidade de solidão e a de
encontro com os outros, confesso, envergonhadamente, que qualquer presença
humana me perturba, como se houvesse sempre algum recado pessoal que não sei dar
ou receber. E essa perturbação transforma-se numa espécie de remorso quando a
separação é definitiva. Falo disto porque o Prémio que me é atribuído tem o
nome de um amigo meu de quase meio século, que todos perdemos há poucos meses,
um amigo a quem inclusivamente devo, como a Vitorino Nemésio, o parecer
que me fez professor universitário. Por isso, as minhas palavras finais têm de ser
de reconhecimento e de homenagem. Antes de mais, a Jacinto Prado Coelho,
a quem os estudos literários portugueses devem muito de uma fase de maior rigor
desde os anos de 40, e que muitos dos actuais docentes de Literatura
recordarão, ainda durante muito tempo, como seu mestre e exemplo principal. Já lhe
associei o nome de Vitorino Nemésio, que não apenas me deu várias provas
de solidariedade preciosa, como lições finíssimas de intuição textual, e um dos
meus mais empenhados temas de estudo. Acrescentarei um terceiro nome de ausente
definitivo, o de Mário Sacramento, um dos mais abertos espíritos que
conheci, vocacionado para o ensaio, vocacionado para o diálogo desassombrado, e
também vocacionado para aquela generosa luta que o queimou depressa». In
Óscar Lopes, Uma Arte de Música e Outros Ensaios, Oficina Musical, Binográfica,
Porto, 1986.
Cortesia de Oficina Musical/JDACT