terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Leituras. A Trança Feiticeira. Henrique S. Fernandes. «Porém, ao pisar o cais de pedra, em plano inclinado, no começo da Avenida Almeida Ribeiro, eles bebiam o “tau-fu-fá” (pasta de soja servida em calda doce), que ainda estava quente»

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«(…) E tudo teria passado despercebido, não ficando nada na memória, senão um quadro inédito, se, nesse instante, não espadanasse uma gargalhadinha moça e sadia a evolar-se pelo ar, muito perto. Deteve-se primeiro curioso, depois com súbito interesse pela beleza rústica donde partia o riso. Gostou do que viu. Nunca contemplara uma moça tão atraente, de pé descalço, e nem podia adivinhar que um bairro de facínoras e desordeiros entesourasse uma bela jóia como aquela. Nunca vira, também, uma trança igual, tão preta que fulgia ao sol. A-Leng, porque era ela, captou o interesse e teve a desagradável sensação de ser escrutinada da cabeça aos pés. Não estava habituada a um exame tão atrevido, sobretudo, dum estranho e demais kuai-lou. Mais perturbada que irritada, resolveu afastar o insolente, à vista das companheiras. Ao tirar o balde carregado até o topo, fingiu desequilibrar-se e a água saltou, chapinhando o solo, atingindo os sapatos e as calças bem vincadas do Belo Adozindo. Não pediu desculpas, voltando-se para encher de novo o balde. Houve risos que doeram mais ao rapaz do que o mau jeito dela, feito de propósito. Sem pronunciar palavra, Adozindo seguiu caminho, enxofrado de despeito. Era a primeira vez que uma mulher se atrevia a desdenhá-lo. Em vez de enlanguescer-se perante a sua beleza irresistível, a rapariga ousava sujar-lhe os sapatos lustrosos e as calças, sem se desculpar. E era uma aguadeira ou lavadeira, de categoria abaixo duma criada de servir. A desfaçatez! Ali estava um exemplo da decantada malcriação da gente do Cheok Chai Un. Nunca mais poria os pés ali.
O brilho do sol, a aragem refrescante que bolia com as árvores de S. José da Rua do Campo, a temperatura seca do melhor mês do ano, dissiparam-lhe o abespinhamento. Não ia consumir a sua disposição numa zanga fútil, por causa duma aguadeira. Volveu o pensamento para a viúva do Baixo Monte, a estupenda Lucrécia, a sua última conquista que não esperara acabar o luto para se lhe entregar nos braços. Se era rica em bens, mais o era na cama, com aqueles jeitosos seios de rola arrulhante. Enquanto aguardasse o recato do luto, não viria com exigências e podia aproveitar-se bem. Quando completasse um ano, então chegaria o momento da verdade. Mas esta data ainda estava bem longe, tinha muitos meses para planear como descartar-se dela. Ladeou o Jardim de S. Francisco, onde crianças chilreantes, acompanhadas das criadas, corriam nas áleas dos canteiros, e aproximou-se da muralha que o separava do mar. A baía da Praia Grande, desde o fortim de S. Francisco até acurva do Bom Parto, coalhava-se de juncos e lorchas, na poalha do sol. Encaminhou-se na sombra recolhida das árvores de pagode, cujos murmúrios eram um fundo musical para a cantilena da maré enchente, espumando nos granitos da Praia Grande.
Senhoras vestidas de (vestimenta com véu e saia comprida, de cor preta, geralmente usada por mulheres idosas) passavam embiocadas, vindas da igreja. As casas assobradadas permaneciam de persianas fechadas, pois a hora era ainda matinal e as moças preferiam a tarde para se postarem à janela. Vendilhões ambulantes apregoavam acepipes avinagrados e achares chineses. O amolador de facas esfalfava-se, rolando a sua maquineta, enquanto, mais adiante, o sapateiro-remendão chamava a clientela, martelando o ferro com o característico toc-toc. Olhou para o relógio e apressou-se. Os amigos iriam protestar, pois atrasara-se. Porém, ao pisar o cais de pedra, em plano inclinado, no começo da Avenida Almeida Ribeiro, eles bebiam o tau-fu-fá (pasta de soja servida em calda doce), que ainda estava quente. O vendedor perguntou-lhe se queria, mas Adozindo recusou. Lançou a vista para o edifício do Banco Nacional Ultramarino, ainda fechado, e depois para o Hotel Riviera, ambos à sua frente.
Na varanda dum quarto do segundo andar, uma loira penteava o cabelo de fartas madeixas, caídas sobre os ombros. Uma inglesa! Nunca experimentara uma inglesa. Para a sua colecção, seria um espécime verdadeiramente singular. Ela, do alto, observou-o indiferente, continuando a deslizar o pente pelos cabelos. Ele, em baixo, pôs-se logo em postura fatal, sem avaliar o possível ridículo. - Não me digas que também foi tua. - Não foi, mas se viver em Macau, sê-lo-á». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT