Tráfico e Tráficos. Os navios negreiros não param de passar
«(…) A ideia de que foram os europeus que introduziram no continente
africano a escravatura e o tráfico de escravos, que passa ainda nalguns discursos
mais ideológicos, não tem, como se sabe, qualquer fundamento. Antes da chegada
dos europeus já a escravatura estava presente em todas as sociedades africanas
e, quanto ao início do tráfico com o exterior, vários séculos antes de começar
o tráfico atlântico já os comerciantes árabes, como veremos a seguir,
transportavam escravos africanos em direção à bacia mediterrânica e à Península
Arábica. O que não impede que se reconheça a repercussão que o comércio negreiro
transatlântico teve nos circuitos internos preexistentes e no interior das
sociedades de origem. Outro lugar-comum, o de que o tráfico, no período transatlântico,
era apenas uma iniciativa e um negócio de europeus, de que os africanos, todos
os africanos, eram vítimas passivas, não tem igualmente cabimento. Não foi sob
coacção que as elites locais participaram no tráfico, nem tal seria possível,
mas de forma voluntária, consciente, sabendo usar em proveito próprio os
mecanismos de mercado e auferindo lucros significativos.
Ainda hoje, em textos de divulgação, a ideia da responsabilização exclusiva
dos brancos é levada tão longe que se fala comummente não em comércio mas em captura, dos escravos, no sentido
de captura directa e violenta pelos europeus, sem sequer se ter em conta que
período está a ser considerado. É certo que os portugueses, quando chegaram à
África subsariana, usaram ainda, como faziam em Marrocos, raids ofensivos para a captura de prisioneiros, por vezes
mulheres e crianças, depois vendidos como escravos. Desde meados do século XV
tais práticas foram substituídas, salvo situações excepcionais, por relações de
comércio pacíficas com os comerciantes e as autoridades locais. Isso só foi
possível porque, como já dissemos, a escravatura estava instalada na África
subsaríana antes do contacto directo com os europeus, tratando-se de uma
instituição não só conhecida como largamente disseminada. Segundo o historiador
norte-americano John Thornton, essa difusão e o enraizamento da escravidão nas
estruturas legais e institucionais das sociedades africanas tinham a ver com o
facto de, não existindo posse privada da terra, os escravos serem a única
forma de propriedade privada reconhecida nas leis africanas que produzia rendimentos,
pois podiam ser herdados e gerar riqueza. Não admira, por isso, que a posse de
escravos, além de proporcionar força de trabalho, fosse também uma fonte de
poder e de prestígio.
Embora muito mal documentada, sabemos, ainda assim, que a escravidão
tradicional africana tinha características específicas, diferentes das que virá
a ter, por exemplo, o escravismo na economia de plantação atlântica. Parece
seguro que em África, de uma forma geral, os escravos eram melhor tratados e
estavam melhor integrados na sociedade, o que não impedia que lhes fossem
atribuídas todo o tipo de tarefas, incluindo as mais humilhantes, e que
pudessem ser também vítimas de violência. Uma das diferenças principais talvez
fosse o facto de, pelo menos em certos casos, a situação de escravo não impedir
a ascensão social, podendo alguns desempenhar importantes funções militares e
até políticas. Por exemplo, no reino do Ndongo (Angola), antes da entrada dos portugueses, o cargo de tandala,
a segunda figura do Estado, uma espécie de vice-rei,
era ocupado, em princípio, por um escravo.
Esses escravos, muitos deles presas de guerra, eram também já objecto de
compra e venda, existindo um desenvolvido comércio de mercadoria humana, o que
pode explicar a facilidade com que os europeus encontraram interlocutores (chefes
políticos, funcionários régios, mercadores...) quando quiseram comprar escravos
na costa ocidental africana. Nalguns casos, existiam já mercados regionais e, à
sua chegada no século XV, os portugueses, os primeiros a aparecer, mais não fizeram
que integrar-se nessas redes comerciais preexistentes, adaptando-lhes os meios
técnicos de que dispunham, nomeadamente em termos de transportes marítimos. O
historiador togolês Joseph Wen-Mewuda, num artigo significativamente intitulado
Africains et Portugais: tous des négriers, (Africanos e Portugueses, ambos
negreiros), mostra como as relações entre portugueses e africanos
podiam ser muito mais complexas do que uma visão simplista quer fazer crer,
podendo mesmo os africanos ser simultaneamente fornecedores e consumidores de
escravos. É o que acontece na região
da Mina. Os portugueses aproveitaram a rede inter-regional de trocas e
conseguiam, no Benim, os escravos que depois vendiam aos mercadores akan em troca do ambicionado ouro. Assumiam,
nesse caso concreto, o papel de intermediários, inserindo-se num tipo de
tráfico que era já anterior à sua chegada». In Arlindo Manuel Caldeira,
Escravos e Traficantes no império português, O Comércio Negreiro no Atlântico
durante os séculos XV a XIX, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-626-478-9.
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