Breve tratado de saber viver para as novas gerações de jornalistas
«(…) É de muito mau gosto e revela um espírito mal formado procurar
explicitar certas expressões consagradas. Os leitores sabem o que elas
significam e o jornalista não deve passar um atestado de menoridade à
inteligência dos leitores. Só jornalistas associais, inadaptados, anarquistas,
bolchevistas e congéneres não respeitam as convenções linguísticas
estabelecidas. Toda a gente sabe que quando um político diz que vai ser nomeada uma Comissáo de Inquérito
isso significa o assunto vai ser abafado. É inoportuno e manifesta enorme
falta de experiência e de educação perguntar-lhe: isso significa que o assunto vai ser abafado?. Se tal sucedesse
o político deveria responder-lhe: não
faço comentários, que significa, como toda a gente sabe, acertou em cheio!. Não deveria
todavia o jornalista, sob pena de ficar o resto da vida a redigir a Necrologia,
insistir: isso significa que acertei
em cheio? Do mesmo modo, quando um político diz que não está agarrado ao lugar, apesar de
toda a gente saber que isso quer dizer daqui
não saio, daqui ninguém me tira!, não é conveniente o jornalista perguntar-lhe
mais nada sobre o assunto que eventualmente possa forçar o homem a expressar
melhor o seu pensamento.
E o mesmo em relação a outros ditos de uso corrente em entrevistas,
conferências de Imprensa e declarações mais ou menos públicas. Toda a gente
sabe que não confirmo nem desminto,
significa como é que este tipo soube?;
que o assunto está a ser estudado
significa não faço a menor ideia do
que se trata; que ganhe o melhor
significa precisamos de ganhar, nem
que tenhamos que oferecer um casaco de peles à mulher do árbitro; que o povo português, etc.) significa votem em mim; que o sr. director não está significa o sr. director está mas não está para o aturar;
que os altos interesses nacionais
significa convém-me que; que reduzir o peso do sector público,
significa passar a patacos as EP's que
dão lucro e fazer os contribuintes pagar os prejuízos das outras; que competitividade, significa salários baixos; que flexibilidade das leis laborais
significa despedimentos fáceis;
que competência significa é do meu partido; que o árbitro roubou-nos um penalty
significa perdemos porque jogámos pior;
que grande arbitragem significa fomos beneficiados pelo árbitro;
que estou muito contente por vir cantar a
Lisboa significa saquei uma boa
maquia a estes pategos; que o
Porto é a capital do trabalho significa preciso
dos votos daqueles parolos; que não
tenho nada a declarar significa é
tudo verdade; que segundo fontes
geralmente bem informadas significa disse-me
um chauffeur de táxi; que observadores
são de opinião que significa foi-me
encomendado que espalhasse que; que isto
é of the record, significa contem
tudo mas não digam que fui eu que disse; e por aí adiante.
As convenções linguísticas dos homens públicos e dos jornalistas são
pilares sobre que assentam a segurança da sociedade democrática e a liberdade
de Imprensa. Os leitores, os telespectadores, os ouvintes da rádio, dominam um
complexo código cifrado de comunicação que os jornalistas devem respeitar, sob pena
de deverem procurar emprego a vender andares ou a legalizar carros de
emigrantes em qualquer agência fora do tempo e do espaço. Noblesse oblige e a paz e
a gramática das famílias (Nação é com maiúscula, Governo e Imprensa com as
maiores maiúsculas possíveis) também obligent.
Exemplo de grande economia de bom senso é o daquela senhora da melhor sociedade
que contava que, quando era obrigada a insultar, ao volante do seu automóvel, outro
automobilista, em vez de um chorrilho de palavrões, como faria qualquer
delegado de propaganda médica, gritava para fora da janela: seu bicho da fruta! Assim, explicava
ela: no meio da confusão eles percebem
o que quero que eles percebam e eu escuso de sujar a língua!» In
Manuel António Pina, JN, 12 de Dezembro de 1987.
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
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