segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Saudade da Literatura. Crónica. Antologia. 1984-2012. Manuel António Pina. «E o mesmo em relação a outros ditos de uso corrente em entrevistas, conferências de Imprensa e declarações mais ou menos públicas. Toda a gente sabe que "não confirmo nem desminto", significa 'como é que este tipo soube?'; que "o assunto está a ser estudado" significa 'não faço a menor ideia do que se trata…'»

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Breve tratado de saber viver para as novas gerações de jornalistas
«(…) É de muito mau gosto e revela um espírito mal formado procurar explicitar certas expressões consagradas. Os leitores sabem o que elas significam e o jornalista não deve passar um atestado de menoridade à inteligência dos leitores. Só jornalistas associais, inadaptados, anarquistas, bolchevistas e congéneres não respeitam as convenções linguísticas estabelecidas. Toda a gente sabe que quando um político diz que vai ser nomeada uma Comissáo de Inquérito isso significa o assunto vai ser abafado. É inoportuno e manifesta enorme falta de experiência e de educação perguntar-lhe: isso significa que o assunto vai ser abafado?. Se tal sucedesse o político deveria responder-lhe: não faço comentários, que significa, como toda a gente sabe, acertou em cheio!. Não deveria todavia o jornalista, sob pena de ficar o resto da vida a redigir a Necrologia, insistir: isso significa que acertei em cheio? Do mesmo modo, quando um político diz que não está agarrado ao lugar, apesar de toda a gente saber que isso quer dizer daqui não saio, daqui ninguém me tira!, não é conveniente o jornalista perguntar-lhe mais nada sobre o assunto que eventualmente possa forçar o homem a expressar melhor o seu pensamento.
E o mesmo em relação a outros ditos de uso corrente em entrevistas, conferências de Imprensa e declarações mais ou menos públicas. Toda a gente sabe que não confirmo nem desminto, significa como é que este tipo soube?; que o assunto está a ser estudado significa não faço a menor ideia do que se trata; que ganhe o melhor significa precisamos de ganhar, nem que tenhamos que oferecer um casaco de peles à mulher do árbitro; que o povo português, etc.) significa votem em mim; que o sr. director não está significa o sr. director está mas não está para o aturar; que os altos interesses nacionais significa convém-me que; que reduzir o peso do sector público, significa passar a patacos as EP's que dão lucro e fazer os contribuintes pagar os prejuízos das outras; que competitividade, significa salários baixos; que flexibilidade das leis laborais significa despedimentos fáceis; que competência significa é do meu partido; que o árbitro roubou-nos um penalty significa perdemos porque jogámos pior; que grande arbitragem significa fomos beneficiados pelo árbitro; que estou muito contente por vir cantar a Lisboa significa saquei uma boa maquia a estes pategos; que o Porto é a capital do trabalho significa preciso dos votos daqueles parolos; que não tenho nada a declarar significa é tudo verdade; que segundo fontes geralmente bem informadas significa disse-me um chauffeur de táxi; que observadores são de opinião que significa foi-me encomendado que espalhasse que; que isto é of the record, significa contem tudo mas não digam que fui eu que disse; e por aí adiante.
As convenções linguísticas dos homens públicos e dos jornalistas são pilares sobre que assentam a segurança da sociedade democrática e a liberdade de Imprensa. Os leitores, os telespectadores, os ouvintes da rádio, dominam um complexo código cifrado de comunicação que os jornalistas devem respeitar, sob pena de deverem procurar emprego a vender andares ou a legalizar carros de emigrantes em qualquer agência fora do tempo e do espaço. Noblesse oblige e a paz e a gramática das famílias (Nação é com maiúscula, Governo e Imprensa com as maiores maiúsculas possíveis) também obligent. Exemplo de grande economia de bom senso é o daquela senhora da melhor sociedade que contava que, quando era obrigada a insultar, ao volante do seu automóvel, outro automobilista, em vez de um chorrilho de palavrões, como faria qualquer delegado de propaganda médica, gritava para fora da janela: seu bicho da fruta! Assim, explicava ela: no meio da confusão eles percebem o que quero que eles percebam e eu escuso de sujar a língua!» In Manuel António Pina, JN, 12 de Dezembro de 1987.

In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia, 1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN 978-972-37-1684-9.

Cortesia de AssírioAlvim/JDACT