sábado, 15 de fevereiro de 2014

Os Passos em Volta. Herberto Helder. «Ouviu? Tenho medo. Ninguém responde, e eu deito-me de novo, vendo a luz amarela sobre o meu próprio corpo e escutando um ralo devasso a coaxar dentro deste terror»

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O Grito
«(…) por favor, dirijo-me a alguém por entre a música, diga que compreende. Diga-me agora, já. Mesmo que não compreenda. O inspector sorri. Como pode este sorrir tanto? O senhor decerto concorda em que somos necessários. Asseguramos uma ordem que permite a criação. Estabelecemos o clima próprio… Claro que nunca mais dormi. Espero os gritos. Espero-os todas as noites. Fico sentado na tarimba, tiritando. Estou vazio. O meu desespero é este vazio total, estranha forma de terror que nunca mais me abandonará. Ouço um ralo, e isso impacienta-me. Um ralo é uma coisa estúpida. Pode até fazer com que eu adormeça. Também ouço todas as noites os gritos que partem de algures na prisão, talvez do piso em cima, de qualquer cela semelhante a esta. São cada vez mais fracos e agora, na quinta noite, esforço-me por destacá-los do silêncio amarelo do corredor. Serei um colecionador de gritos? Não consigo senão ter medo, esta força desordenada e súbita que me arrasta para o pote. Chamo por alguém. Digo nomes ao acaso. Há-de haver algum preso nas celas próximas, alguém a quem dizer: Ouviu? Tenho medo. Ninguém responde, e eu deito-me de novo, vendo a luz amarela sobre o meu próprio corpo e escutando um ralo devasso a coaxar dentro deste terror.
O jacto de fogo sobe do fundo até às estrelas. Sou um bêbado. O poço estremece. É o último grito, a agonia do mundo. Uma coluna de pedra que se parte de repente. Nasceu num homem. Propagou-se. Está em mim. Caio então muito depressa no sono. Durmo. Durmo cada vez mais. Um dia já não não acordarei. Espero nunca mais acordar. Acendo um cigarro, e o espelho mostra que não tremo. Quem sabe se a morte desse homem… Como digo? Não é verdade que o seu sofrimento acabou para sempre? Sim, mas como posso libertar-me desses gritos, esse espantoso grito final, e adormecer, morrer? Bebemos. Digo: bela cerveja.
E meto as mãos pelas coxas de uma das raparigas. Somos três à mesa. As duas mulheres riem continuamente. Um soluço cresce pela cerveja acima, e então bebo dois grandes goles. Enterro-me na música violenta. Pensam acaso que não estive também a gerar esse grito? Que ele não foi do mesmo modo um sofrimento meu, um crime? A névoa afoga-me. Por dentro da névoa as raparigas riem como loucas. Dizem piadas obscenas. Vou cair com a cabeça sobre a mesa fria. Vou dormir mais uma vez. Um bêbado que dorme caído sobre o tampo de uma mesa ressona como um porco. É sempre assim. Ressonamos como porcos, e as mulheres a nosso lado riem loucamente nos seus vestidos de cor. 
 
Os comboios que vão para Antuérpia
Em Janeiro eu estava em Bruxelas, nos subúrbios, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Fora-se o Natal. Algo desaparecera, uma coisa ingénua em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro nem livros nem cigarros. Não tinha trabalho nem ócio, porque estava desesperado. Por isso passava o dia e a noite no quarto. Na linha em baixo rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava em Deus quando os comboios trepidavam nos carris e apitavam tão perto de mim. Quando iam possivelmente a caminho de Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa em Deus: com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus, um comboio: algo que sem dúvida existe, mas é absurdo, que parte com um destino indefinido: Antuérpia, que possivelmente (evidente) não era. Às vezes vinha à janela e, por detrás dos vidros, olhava para o caminho-de-ferro. Mas antes de lá chegar os meus olhos encontravam uma árvore esquisita, tímida mas tenazmente viva num quintal próximo». In Herberto Helder, Os Passos em Volta, Assírio Alvim, 2009, ISBN 978-972-37-0119-7.
 
Cortesia A Alvim/JDACT