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O
Grito
«(…)
por favor, dirijo-me a alguém por entre a música, diga que compreende. Diga-me
agora, já. Mesmo que não compreenda. O inspector sorri. Como pode este sorrir tanto?
O senhor decerto concorda em que somos necessários. Asseguramos uma ordem que
permite a criação. Estabelecemos o clima próprio… Claro que nunca mais dormi.
Espero os gritos. Espero-os todas as noites. Fico sentado na tarimba,
tiritando. Estou vazio. O meu desespero é este vazio total, estranha forma de
terror que nunca mais me abandonará. Ouço um ralo, e isso impacienta-me. Um
ralo é uma coisa estúpida. Pode até fazer com que eu adormeça. Também ouço
todas as noites os gritos que partem de algures na prisão, talvez do piso em
cima, de qualquer cela semelhante a esta. São cada vez mais fracos e agora, na
quinta noite, esforço-me por destacá-los do silêncio amarelo do corredor. Serei um colecionador de gritos?
Não consigo senão ter medo, esta força desordenada e súbita que me arrasta para
o pote. Chamo por alguém. Digo nomes ao acaso. Há-de haver algum preso nas
celas próximas, alguém a quem dizer: Ouviu?
Tenho medo. Ninguém responde, e eu deito-me de novo, vendo a luz amarela sobre
o meu próprio corpo e escutando um ralo devasso a coaxar dentro deste terror.
O
jacto de fogo sobe do fundo até às estrelas. Sou um bêbado. O poço estremece. É
o último grito, a agonia do mundo. Uma coluna de pedra que se parte de repente.
Nasceu num homem. Propagou-se. Está em mim. Caio então muito depressa no sono.
Durmo. Durmo cada vez mais. Um dia já não não acordarei. Espero nunca mais
acordar. Acendo um cigarro, e o espelho mostra que não tremo. Quem sabe se a
morte desse homem… Como digo? Não é verdade que o seu sofrimento acabou para sempre? Sim, mas como
posso libertar-me desses gritos, esse espantoso grito final, e adormecer, morrer? Bebemos.
Digo: bela cerveja.
E
meto as mãos pelas coxas de uma das raparigas. Somos três à mesa. As duas
mulheres riem continuamente. Um soluço cresce pela cerveja acima, e então bebo
dois grandes goles. Enterro-me na música violenta. Pensam acaso que não estive
também a gerar esse grito? Que
ele não foi do mesmo modo um sofrimento meu, um crime? A névoa afoga-me. Por dentro da névoa as raparigas
riem como loucas. Dizem piadas obscenas. Vou cair com a cabeça sobre a mesa
fria. Vou dormir mais uma vez. Um bêbado que dorme caído sobre o tampo de uma
mesa ressona como um porco. É sempre assim. Ressonamos como porcos, e as
mulheres a nosso lado riem loucamente nos seus vestidos de cor.
Os
comboios que vão para Antuérpia
Em
Janeiro eu estava em Bruxelas, nos subúrbios, numa casa sobre a linha férrea.
Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Fora-se o Natal. Algo desaparecera,
uma coisa ingénua em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não
tinha dinheiro nem livros nem cigarros. Não tinha trabalho nem ócio, porque
estava desesperado. Por isso passava o dia e a noite no quarto. Na linha em
baixo rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava
em Deus quando os comboios trepidavam nos carris e apitavam tão perto de mim. Quando
iam possivelmente a caminho de Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa
em Deus: com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus, um comboio:
algo que sem dúvida existe, mas é absurdo, que parte com um destino indefinido:
Antuérpia, que possivelmente (evidente) não era. Às vezes vinha à janela
e, por detrás dos vidros, olhava para o caminho-de-ferro. Mas antes de lá
chegar os meus olhos encontravam uma árvore esquisita, tímida mas tenazmente
viva num quintal próximo». In Herberto Helder, Os Passos em Volta,
Assírio Alvim, 2009, ISBN 978-972-37-0119-7.
Cortesia
A Alvim/JDACT