«(…) Não sabes que o ilustre professor, naquela tarde, antes de se ir
embora, recitou com voz bastante clara, com gestos e trejeitos de um latino, os
próprios versos do seu tetravô, tu deves saber quais, que quase me cantou pela
primeira vez um segundo depois de me
ter dito que o tinhas beijado? Se então não lhe dei importância, desta
outra vez, na dessa tarde, interpretei que ele iria mandar ao diabo todas as
suas desventuras, e que a partir daquele mesmo momento se iria divertir. Quando
te abri a porta, ficaste a olhar para mim e disseste-me: Se calhar, você sabe quem é Ariadne. E eu respondi-te: Sei, embora sem nunca a ter visto, se bem
que suspeite que já não o poderei dizer a partir de agora. Deixa-me entrar? Naturalmente.
E, além disso, convido-a a um pouco de jantar em companhia, se é que chega para
dois aquilo que estou a cozinhar. Caso contrário, contemplarei enquanto come.
Tu já tinhas entrado, tiraste o impermeável e acrescentaste, talvez como que a
justificares-te: Sabe que tenho o carro
avariado, e que o tenho aqui em frente, na berma, meio enterrado na neve?
Da minha janela não se via o sítio, e não parecia indispensável, para
corroborar a tua afirmação, uma descida a dois até à entrada. Tenho de telefonar para que o levem para
a oficina, mas a porta do professor está fechada e neste seu andar já sei que
não há telefone. Sim, mas
quando ere se vai embora, costuma deixar-me a chave para o caso de eu precisar de
alguma coisa, meia dúzia de batatas ou um dicionário. Ah, bom! Nesse caso... Procurei a
chave e dei-ta. Foste ao andar de Alain e suponho que terás dado instruções
acerca do teu carro avariado. Regressaste de imediato. Realmente, já está tudo
pronto, de forma que posso ir-me
embora, se estiver a estorvá-lo. Por
acaso insinuei isso? Deixei-o
entrever? Não, mas sei que a
estas horas você trabalha. Não te disse nem que sim nem que não.
Pedi-te que te sentasses e que, já que estavas ali, esperasses um pouco, pois
algo do que eu tinha podia interessar-te. Ficaste surpreendida a princípio;
mas, como eu sorrisse, exclamaste de repente: Que tonta! Você vai pôr esse
disco com o meu nome. pois claro! Há
quanto tempo é que o professor lhe anda afarar dele? E quantas vezes é
que já esteve em sua casa, e ele nunca
a convidou a ouvi-lo? costumava dizer-me que você devia estar a
escrever. Pois, não. Eu não sou
trabalhador, e ele sabe-o. Quando você se ia embora, ele vinha oferecer-me do queijo
ou da fruta que tinha comprado e de que eu pudesse ter vontade, e depois
contava-me alguma das suas histórias: creio que tem em mim o melhor dos seus
ouvintes, o mais ingénuo e de riso fácil.
Desataste a rir, tu também, e disseste que já sabias. o que acontece, continuei, é que ele não
quer que eu a conheça a si. Tapaste a cara
com as mãos e explicaste em voz baixa, como aquele que descobre um segredo:
Não quero que nos conheçamos porque tem medo que você me roube. ...Que a roube? Um rapto, talvez? Não;
não é disso que tem medo, não, mas sim que você me atraia para as suas aulas e
me afaste das dele. Diz-me muitas vezes que você é um professor excelente, que
a sua voz é como música, e algumas das suas alunas já me confirmaram isso. Porém, melhor que ele não, embora
eu, claro está, não disponha de um tetravô que figure como grande poeta na
história da literatura inglesa e cujos versos eu utilize para deslumbrar
rapariguinhas. Pareceu-me que coravas. Alain
faz isso?, perguntaste, penso que para disfarçar, e eu, por razões
parecidas, talvez tenha desviado a conversa; disse-te: É assim que lhe chama? Alain?
Não usa o outro nome? Sim;
chamo-lhe Claire, como todos os seus amigos, como você mesmo. E eu, sabe também como é que eu me chamo? Claro que sim.
E sabe que no meu país as pessoas se tratam por tu sem necessidade de maior trato? É um convite a que o chame pelo seu nome? Pois, claro.
Pus-te o disco, O Lamento de Ariadne, e ouviste-o
silenciosa e recolhida em ti, sem mais nada (então) no mundo que a
música e tu própria: o sentimento que no teu interior brotasse; e quando se
acabou, pediste-me que o pusesse outra vez, e compreendi que o que estava a
acontecer te pertencia inteiramente, e talvez fizesse parte do teu segredo,
aproveitei o silêncio para ir à cozinha e preparar o jantar. Chegavam-me as
vozes da povera Arianna e a sua insistência
em suplicar que a deixassem morrer, e eu atarefava-me na confecção do peixe e
na colocação de uns copos na mesa; com cuidado, não fosse um ruído extemporâneo
perturbar-te o êxtase. Nunca te disse que espreitei e te vi com os olhos fechados
(a música já tinha terminado) e muito quieta. Então tive inveja de
Claire pela primeira vez; uma inveja, naquela altura, de amigo, caramba, não
penses que lhe desejei a morte para que me ficasses em herança: simplesmente
senti que gostaria de conhecer uma rapariga como tu que fechasse por mim os
olhos e se deixasse levar por uma música qualquer, ainda que não fosse aquela.
Apareceste, recuperada para o tempo e para a vida, na porta da cozinha, sem
dizer nada, resplandecente como se te acompanhasse um halo, ainda que só com
uma sombra de sorriso, reminiscência do deleite imediato, da viagem feliz a que
a tua alma, talvez também o teu corpo,
se tivessem entregado? A partir daquele momento não aconteceu nada de
importante, a não ser a própria cena, ainda que com variantes, de muitos outros
entardeceres com convidada, quando uma das minhas alunas fica para jantar comigo,
e, depois, em vez de ouvir música ao meu lado, me suplica que lhe explique um
ponto difícil do tema em que trabalha. Ah, as minhas alunas não me beijam dans
la bouche, como tu ao professor, embora às vezes me dêem prendas
práticas, daquelas que revelam a sua preocupação pela minha solidão: uma peça
de queijo francês, ou um frasco de compota trazida de importação e adquirida
para mim num distante mercado do Quebeque! Ajudaste-me a levantar a mesa e até
te empenhaste em lavar-me a louça, amontoada no lava-louça desde há uma semana».
In
Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino,
1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas,
Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT