«(…) É claro que certas pessoas preferiam outra liberdade: a de sonhar,
dormir talvez; e essas, contra Oliveira
Martins continuarão a explicar, por exemplo, o obscuro da constituição
histórica de Portugal por uma coisa ainda mais obscura, a lusitaneidade; e censurarão no historiador aquilo que
justamente o torna interessante, que é a radicação no passado nacional dos
problemas da sociedade sua contemporânea, a suspeita de que os portugueses se
têm batido historicamente, com sorte nem sempre feliz, contra o mesmo
desnivelamento social humano de que é preciso resgatá-la agora (agora, em 1885; em 1984, e agora 2012, e
agora 2013…). Nós queremos libertar-nos
das nossas condições, vendo-as de frente, deixar a outras pessoas aquela espiritualidade
do avestruz que evita as realidades molestas enterrando a cabeça na areia. Ora
(insistindo), se nos interessa o homem histórico, o homem do seu tempo,
o homem sempre diferente, progressivo, o homem que faz experiência, em vez de homem de sempre, o homem-avestruz
que põe a cabeça fora do mundo, os problemas de Oliveira Martins são para nós os da sua geração; Oliveira
Martins é para nós uma consciência que reflecte sobre o que se pensava antes
dele e sobre o que fazia com que antes dele se pensasse de uma determinada
maneira. Com Oliveira Mútins libertamo-nos, portanto, de velhas
misérias, não pelo sonho nacionalista mas pela consciência inteligentemente
patriótica que nos reclama uma acção. E é com este Oliveira Martins que podemos
reaprender, não o seu ambíguo cesarismo à Bismark, não o seu sonho ibérico, e o
seu antifeminismo, não as soluções inevitavelmente ultrapassadas pela segunda
revolução industrial da turbina eléctrica e do motõr de explosão, mas certas
verdades mais elementares, como esta, que lhe inspira o projecto de lei do
fomento rural, toda a sua obra de economista e o melhor da sua obra de historiador:
a Nação não é um substantivo abstracto, mitologicamente maiusculado, com
insígnias drapejantes aos ventos passadistas ao gosto de Ramalho, TeóÍilo e do Estado Novo; a Nação só ganha em
dignidade se, de substantivo próprio e abstracto, se fizer um substantivo comum
e colectivo.
A carreira literária de Oliveira Martins desdobra-se paralelamente à de
um grupo, que pode considerar-se intelectualmente emancipado pelo início da
década de 1870, e até, podemos
precisar melhor: desde 1871. É claro que o grito contra os filisteus fora já
erguido em Coimbra seis anos antes,
por Antero
e Teófilo.
Mas em 1865 havia mais uma vontade
de revolta do que uma consciência de fins; Antero e Teófilo vieram sobretudo
afirmar, em 1865, a galhardia de uma
independência mental que fez pela primeira vez escândalo, mas não era nova em
Coimbra, nem no Porto, nem da parte deles, nem de outros até já consagrados,
como João
de Deus; e vieram, sobretudo, decorar com nomes alemães (Hegel,
Herder, Heine, Goethe) e de intermediários franceses (Vera, Michelet,
Quinet, Proudhon) a mesma metafísica do Progresso
Indefinido e da Imanência, o mesmo jacobinismo folclorista, o mesmo socialismo
federalista e utópico que tinham emergido, aqui e além, desde meados de 1850, em Soares Passos, Mendes Leal,
José Estêvão, Tomás Ribeiro, Henriques Nogueira.
Sim, aqueles que hoje nos parecem românticos retardatários foram,
afinal, os iniciadores da grande geração iconoclasta. Com o Firmamento, de Soares de Passos,
a poesia lamartineana da emoção cósmica deriva de Herculano para as Odes Modernas de Antero; e o
culto pessimista de Camões, como símbolo patriótico e libertário, chegou de Garrett,
por intermédio de Passos e Mendes Leal, a Teófilo, que abrirá com o terceiro
centenário camoniano o precedente das comemorações pátrias retrospectivas, sucedâneo
moderno do sebastianismo. De resto, ideologicamente,
Teófilo Braga foi o nosso mais puro romântico. Por outro lado, o
republicanismo federal em que são correligionários Teófilo Braga e Antero de Quental,
até que este se decide por novos rumos, apontados por Oliveira Martins, tinha
feito escola desde 1851 com
Henriques Nogueira». In Óscar Lopes, Álbum de Família, Ensaios
sobre Autores Portugueses do século XIX, Reflexões sobre Herculano como
polemista, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1984.
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