«É talvez impossível encontrar um escritor português cujo estudo seja
mais fascinante do que Aquilino sob
estes dois pontos de vista cruzados: o ponto de vista da evocação e meditação
do mundo da sua infância, um mundo prototípico, rural, de há cerca de um século
na ainda tão sertaneja Beira Alta serrana; e o ponto de vista do pai e do avô
que inventa ou refaz histórias e lengalengas para os filhos e, depois, uma sua
neta sucessivamente sentados nos seus joelhos, animando-se por ter ao colo algo
como a sua própria imagem infantil rediviva, e traindo ao mesmo tempo, e sem se
dar por isso, alguns traços irrepetíveis da sua própria geração e uma
incontível angústia pelas perdas irremediáveis e pelo fim que está à vista de
qualquer vida, e sobretudo da sua própria vida individual. A infância
é, sobretudo em tempos modernos, um tema que apaixona poetas, artistas e
investigadores, pois trata-se da fase de mais intensa transformação, ou formação
humana, aquela fase em que se definem os esquemas básicos de assimilação e de
adaptação em diversos módulos de reactividade.
Alguns desses módulos estão ainda relativamente próximos da sua base
animal, como o módulo das reacções motrizes e tácteis, no sentido mais lato
destes termos, que dizem respeito a um certo ambiente imediato, ou mesmo como o
modo audiovisual da percepção e acção, a maior distância e intervalo de tempo;
mas o que mais alonga e complica a aprendizagem humana elementar é a inserção
activa dos módulos de compreensão e reacção simbólica, sobretudo a linguagem
comum, que instala uma espécie de segundo mundo, um mundo de circuitos intersubjectivos
com objectos de estatuto fiduciário, isto é, com formações discursivas mais ou
menos amplamente partilhadas mas também sujeitas, quer à sanção e entre ajustamento
dos grupos humanos quer à sanção dos outros módulos em geral mais básicos de
inserção real. Na literatura da mais antiga tradição, a criança figura
frequentemente (em alternativa com o doido, o ébrio, o rústico ou o
estrangeiro, sobretudo exótico), figura quer como imagem daquilo que fica
fora da razão, talvez mesmo acima da razão, quer como porta-voz duma crítica
que através dela se faz mais facilmente passar porque vem da boca da inocência.
É o caso conhecido daquele menino chinês a quem Fernão Mendes Pinto atribui a denúncia
das malfeitorias e inconsequências ético-religiosas dos próprios portugueses no
Oriente; e é o caso não menos conhecido da menina Maria de Noronha, que Almeida
Garrett põe em cena no Frei Luís de
Sousa a exaltar os seus próprios ideais garrettianos da independência e da
liberdade portuguesas.
Seria interessante resumir aqui o trajecto da literatura portuguesa que
se debruça sobre a infância e a adolescência, mas não disponho de tempo… Limitar-me-ei
a lembrar que o tema da infância e adolescência
principiou a ganhar importância com os autores naturalistas, que ele se tornou
mais insistente com os presencistas e neo-realistas de cerca dos anos 40, e que
uma das principais originalidades desde cerca de metade deste século é a
emergência da ficção de autoria e de experiência infantil ou adolescente feminina.
Mas não tenho quaisquer dúvidas acerca do seguinte: o melhor romance português
que tem como protagonista uma criança chama-se Cinco Réis de Gente e foi escrito em 1948 por Aquilino Ribeiro,
que já então dobrara o cabo dos 60 anos-de idade e completava 35 anos de consagração
literária. Nesse mesmo ano de 1948
escreve Aquilino outro romance, Uma
Luz ao Longe, que forma um díptico com Cinco Réis de Gente, deslocando-se
fundamentalmente do cenário da aldeia natal para o internato eclesiástico da
Senhora da Lapa, onde o herói atinge a puberdade e onde ele sente, as primeiras
sacudidelas que õ irão desarreigar do seu relativo paraíso rural e das suas crenças
atávicas. A inspiração é confessamente autobiográfica e liga-se com o mundo
palpitante de outros romances ou contos, liga-se nomeadamente com a explosão iconoclástica
de uma adolescência que podemos já seguir num conto do livro de estreia, Jardim
das Tormentas, 1913, em Via Sinuosa, 1912, e no
volume directamente autobiográfico, Um Escritor Confessa-Se, datado de 1962
e postumamente editado. No centro de uma vária e vasta obra de cerca de 60
volumes cuja temática irradiou muito para além das Terras do Demo, junto à
serra da Nave ou Leomil, mas que aí várias vezes regressa, o romance Cinco
Réis de Gente salienta-se muito no seio da ficção de assunto infantil,
já por então em voga dos anos 40, quer pelo dramatismo coibido, quase brincado,
mas patético de duas ou três sequências decisivas, quer pela ternura comovente
de relações de família ou de pré-sexualidade infantil, quer por um denso
envolvimento de esferas vitais e físicas que lembra um cântico a todas as
criaturas naturais, batidas dos ventos, banhadas pelo sol ou encerradas na
abóbada imensa e enigmática das estrelas visíveis». In Óscar Lopes, A Busca de
Sentido, Aquilino Ribeiro e a Infância, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN
972-21-0986-3, Cadernos Aquilianos, nº 2, 1993.
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