quarta-feira, 5 de março de 2014

Aquilino Ribeiro e a Infância. A Busca de Sentido. Óscar Lopes. «… o melhor romance português que tem como protagonista uma criança chama-se “Cinco Réis de Gente” e foi escrito em 1948 por Aquilino Ribeiro, que já então dobrara o cabo dos 60 anos-de idade…»

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«É talvez impossível encontrar um escritor português cujo estudo seja mais fascinante do que Aquilino sob estes dois pontos de vista cruzados: o ponto de vista da evocação e meditação do mundo da sua infância, um mundo prototípico, rural, de há cerca de um século na ainda tão sertaneja Beira Alta serrana; e o ponto de vista do pai e do avô que inventa ou refaz histórias e lengalengas para os filhos e, depois, uma sua neta sucessivamente sentados nos seus joelhos, animando-se por ter ao colo algo como a sua própria imagem infantil rediviva, e traindo ao mesmo tempo, e sem se dar por isso, alguns traços irrepetíveis da sua própria geração e uma incontível angústia pelas perdas irremediáveis e pelo fim que está à vista de qualquer vida, e sobretudo da sua própria vida individual. A infância é, sobretudo em tempos modernos, um tema que apaixona poetas, artistas e investigadores, pois trata-se da fase de mais intensa transformação, ou formação humana, aquela fase em que se definem os esquemas básicos de assimilação e de adaptação em diversos módulos de reactividade.
Alguns desses módulos estão ainda relativamente próximos da sua base animal, como o módulo das reacções motrizes e tácteis, no sentido mais lato destes termos, que dizem respeito a um certo ambiente imediato, ou mesmo como o modo audiovisual da percepção e acção, a maior distância e intervalo de tempo; mas o que mais alonga e complica a aprendizagem humana elementar é a inserção activa dos módulos de compreensão e reacção simbólica, sobretudo a linguagem comum, que instala uma espécie de segundo mundo, um mundo de circuitos intersubjectivos com objectos de estatuto fiduciário, isto é, com formações discursivas mais ou menos amplamente partilhadas mas também sujeitas, quer à sanção e entre ajustamento dos grupos humanos quer à sanção dos outros módulos em geral mais básicos de inserção real. Na literatura da mais antiga tradição, a criança figura frequentemente (em alternativa com o doido, o ébrio, o rústico ou o estrangeiro, sobretudo exótico), figura quer como imagem daquilo que fica fora da razão, talvez mesmo acima da razão, quer como porta-voz duma crítica que através dela se faz mais facilmente passar porque vem da boca da inocência. É o caso conhecido daquele menino chinês a quem Fernão Mendes Pinto atribui a denúncia das malfeitorias e inconsequências ético-religiosas dos próprios portugueses no Oriente; e é o caso não menos conhecido da menina Maria de Noronha, que Almeida Garrett põe em cena no Frei Luís de Sousa a exaltar os seus próprios ideais garrettianos da independência e da liberdade portuguesas.
Seria interessante resumir aqui o trajecto da literatura portuguesa que se debruça sobre a infância e a adolescência, mas não disponho de tempo… Limitar-me-ei a lembrar que o tema da infância e adolescência principiou a ganhar importância com os autores naturalistas, que ele se tornou mais insistente com os presencistas e neo-realistas de cerca dos anos 40, e que uma das principais originalidades desde cerca de metade deste século é a emergência da ficção de autoria e de experiência infantil ou adolescente feminina. Mas não tenho quaisquer dúvidas acerca do seguinte: o melhor romance português que tem como protagonista uma criança chama-se Cinco Réis de Gente e foi escrito em 1948 por Aquilino Ribeiro, que já então dobrara o cabo dos 60 anos-de idade e completava 35 anos de consagração literária. Nesse mesmo ano de 1948 escreve Aquilino outro romance, Uma Luz ao Longe, que forma um díptico com Cinco Réis de Gente, deslocando-se fundamentalmente do cenário da aldeia natal para o internato eclesiástico da Senhora da Lapa, onde o herói atinge a puberdade e onde ele sente, as primeiras sacudidelas que õ irão desarreigar do seu relativo paraíso rural e das suas crenças atávicas. A inspiração é confessamente autobiográfica e liga-se com o mundo palpitante de outros romances ou contos, liga-se nomeadamente com a explosão iconoclástica de uma adolescência que podemos já seguir num conto do livro de estreia, Jardim das Tormentas, 1913, em Via Sinuosa, 1912, e no volume directamente autobiográfico, Um Escritor Confessa-Se, datado de 1962 e postumamente editado. No centro de uma vária e vasta obra de cerca de 60 volumes cuja temática irradiou muito para além das Terras do Demo, junto à serra da Nave ou Leomil, mas que aí várias vezes regressa, o romance Cinco Réis de Gente salienta-se muito no seio da ficção de assunto infantil, já por então em voga dos anos 40, quer pelo dramatismo coibido, quase brincado, mas patético de duas ou três sequências decisivas, quer pela ternura comovente de relações de família ou de pré-sexualidade infantil, quer por um denso envolvimento de esferas vitais e físicas que lembra um cântico a todas as criaturas naturais, batidas dos ventos, banhadas pelo sol ou encerradas na abóbada imensa e enigmática das estrelas visíveis». In Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Aquilino Ribeiro e a Infância, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3, Cadernos Aquilianos, nº 2, 1993.

Cortesia de Caminho/JDACT