«(…) A única diferença
era apenas este insignificante pormenor: eles eram ricos ou, pelo menos,
suficientemente abastados para poderem adquirir tesouros bibliográficos que
conheciam menos bem, enquanto eu vivia apenas, junto de minha pequena família,
com um salário que mal bastava para satisfazer a renda do apartamento, como
era, então, o de um segundo assistente da Universidade de Lisboa. A magreza dos
recursos tinha, porém, a vantagem de aguçar a inteligência na pesquisa ou
procura de meios ortodoxos que permitissem não só manter um nível decoroso de
vida mas também poder, através de um jogo de trocas bibliográficas entre a
Itália, a França e Portugal, dar-me a ilusão de rivalizar com aqueles
potentados da bibliografia lusíada. Nos inícios de Maio de 1965 visitei o livreiro Américo Francisco Marques, sito
então num primeiro andar da Rua da Misericórdia. Era uma manhã radiosa, com um
céu cristalinamente azul. Depois dos cumprimentos cordiais, formulei a pergunta
que ritualmente vinha repetindo desde Março desse ano: Sabe da existência de um incunábulo em português, do qual se diz ser anterior
ao De uita Christis? O meu interlocutor hesitou, numa pausa.
Mesmo antes que tivesse murmurado um só monossílabo, compreendi que tinha ido
bater à porta justa. Com um sorriso entre enigmático e malicioso, abriu uma
gaveta, estendeu-me uma página de fotocópia e, acompanhando o gesto franco com
uma inflexão interrogativa, perguntou: Será
este o documento que procura? Devorei com os olhos as duas colunas da
página, impressas num gótico cansado. Lá estava o colofão redigido na nossa
língua: Este tratado de confissom se aca / bou na uila de chaues aos oyto di / as
do mes de agosto. Ano de mill / e quatrocentos e oytenta e noue anos: / Laus
tibi x¨pe. / Deo gratias / Amen. Li, reli, voltei a ler e a reler.
Respondi ao meu amigo livreiro que sim, que era aquele o documento que eu
procurava. No meu entusiasmo, afirmei logo que era autêntico e que desejava
dar notícia da sua existência. Américo Francisco Marques procurou
refrear-me, esboçando o seu tempo e sem pressas. Não é que ele tenha uma
concepção panglossiana da vida. Sereno e confiante, da serenidade e confiança que
exornam geralmente a personalidade do self
made man, prometeu-me que dentro de pouco tempo apresentaria os dois indivíduos
que eu desejava conhecer: o incunábulo
e o seu dono. Fiquei aguardando.
Dias depois, pelo
telefone, marcou-se um encontro a quatro com
o cimélio, o seu proprietário, Américo Marques e o autor destas linhas. Na
espectativa, eu perguntava-me a mim mesmo se não podia nascer, deste encontro a
quatro, uma pequena revolução cultural para o nosso século XV. Não recordo
exactamente em que dia ocorreu este encontro, mas posso situá-lo com uma
pequena margem de erro: teve lugar entre o dia 8 e o dia 12 de Maio, às 16
horas, na própria livraria de Américo Francisco Marques. Às 15,45 horas
subi de três em três os degraus da escada que levava ao primeiro andar e abri a
porta, sobre a direita. O livreiro disse-me que Tarcísio Trindade, pois era
este o nome do feliz possuidor do cimélio, seria pontual. Este jovem
educadíssimo chegou à hora marcada, desembrulhou um conjunto de fólios in-quarto sem
encadernação e depô-los nas minhas mãos. Todos os homens que se consagram à
actividade intelectual têm pelo menos uma vez na vida, um átimo de graça em que
estão convencidos de estarem possuídos por um espírito paraclético ou habitados
fugazmente por uma iluminação indefinida. Foi-me dada uma tal experiência (que
repetia momentaneamente uma outra que me fora facultada em Florença, às 7 horas
da manhã, de um dia de Junho de 1949,
entre il Duomo e il
Battistero) no próprio instante da primeira impressão táctil com
o incunábulo: senti a sua autenticidade.
(Em Florença não fora só a revelação fugacíssima do déjà vu, mas
algo de mais profundo). Ao contacto com o papel daquele venerável livro, que
completará o seu milénio (?) dentro de alguns meses, a perturbação
manifestou-se no tremor das mãos: tinha uma certeza intelectual bem sólida de
que se tratava de uma descoberta.
Mas esta não estava ainda cumprida, era apenas pressentida. Havia, agora, que
estabelecer um trânsito lógico, através de argumentos concretos, da fé que
arrasta montanhas para a razão que no-las ajuda realmente a transpor, subindo e
descendo. Li em diagonal algumas páginas, observei em contra-luz a filigrana do papel,
percorri o latim litúrgico das três últimas páginas (as outras todas são em
vernáculo) a precederem o colofão, tomei notas com atenção meticulosa e
propus, a Tarcísio Trindade, um do
ut des que fosse reciprocamente útil: eu desejava estudar o
livro, gratis et pro amove scientiae;
ele, como mercante, era legítimo que alcançasse o seu ganho. Pedi uma fotocópia
e comprometi-me a escrever um artigo de fundo no Diário de Notícias, o
jornal português então mais lido e prestigiado. Tarcísio Trindade
residia então em Alcobaça e não escondia o seu desejo de vender o livro.
Disse-lhe que, com o meu artigo, ia logo vendê-lo. Por quanto?, perguntou, entre curioso e subtilmente ingénuo.
Pode pedir o que quiser,
repliquei; mas não ultrapasse os
quatrocentos contos». In José Pina Martins, De como Identifiquei o
Tratado de Confissom, Chaves 8. VIII, 1489, Revista ICALP, vol. 15, 1989.
Cortesia de ICALP/JDACT