quinta-feira, 6 de março de 2014

Ladino. A Busca de Sentido. Miguel Torga. Óscar Lopes. «Mas como havia de lhe dar o lampo, se aquilo era uma cautela, um rigor!... E logo de pequenino. Matulão, homem feito, e quem é que o fazia largar o ninho? Uma semana inteira em luta com a família. Erguia o gargalo, olhava…»


jdact e cortesia de wikiédia

Ladino
«Miguel Torga tem cinco livros de contos: Bichos 1940, Montanha 41, Rua 42, Novos Contos da Montanha 44, e Pedras Lavradas 51. Estes volumes contêm algumas das peças fortes da sua obra, como Jesus, Maio Moço, Um Coração Desassossegado, O Alma Grande, O Leproso, Mariana, Renovo, Grilo Branco, O Pequeno Herói, cada um dos quais se propõe e realiza, a seu modo, um dado valor, o que os torna diferentes, pois cada valor se exprime do seu modo e se vai mudando à medida que se projecta em imagens. Por isso, depois de uma longa hesitação em esboçar uma tipologia de textos que evidenciasse a sua variedade, optei por concentrar os minutos de que disponho na análise de apenas um, aquele cuja linguagem mais me prendeu pela sua coerência e eficácia. Trata-se do conto Ladino, de Bichos. Tal como acontece com o conjunto dos textos de Bichos, e como o próprio título geral sugere, há uma ideia dominante, que de resto ocorre aqui e além em toda a obra de Torga, numa linha de continuidade pós-naturalista. Principiemos por chamar-lhe antropomorfismo. Mas, no caso específico de Ladino, ficava melhor teriomorfismo, até porque o próprio nome Ladino, que aqui serve de chamadouro a um pardal, significa, não já aquele que fala latim, ou qualquer língua românica, mas aquele que é manhoso, esperto, uma propriedade ocasionalmente humana. E todo o empenho do autor consiste, desde o princípio, em apreender em termos muito explicitamente humanos a esperteza de um animal, ou seja, em focar o bicho como ser falante, que se defende de todos os riscos, tão manhoso, em toda a freguesia, só o padre Gonçalo, adiando a vida numa facécia final que fica no ouvido, até quando acabar milho em Trás-os-Montes.
Esta confusão entre a vida de um pardal e a vida humana, herança dos fabulários mas também de Eça, Fialho, Junqueiro, Trindade Coelho, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, e outros, requer aqui um animal falante e o seu discurso especial. Digamos que um discurso não-académico, se por académico entendermos a exposição com sujeito, predicado e circunstâncias bem reconhecidas. Ora, das sete páginas deste conto, as duas primeiras páginas são um série aparentemente monologal de troços discursivos que pratica uma sequência de actos de fala de difícil classificação: exclamações? Excepções? Encarecimentos? Perguntas? Objecções? Reconhecimentos de valor? Recusa de aceitação pessoal, etc., etc.? Eis um exemplo inicial da recusa de deixar o ninho: Mas como havia de lhe dar o lampo, se aquilo era uma cautela, um rigor!... E logo de pequenino. Matulão, homem feito, e quem é que o fazia largar o ninho? Uma semana inteira em luta com a família. Erguia o gargalo, olhava, e - é o atiras dali abaixo! A mãe, coitada, bem o entusiasmava. A ver se o convencia, punha-se a fazer felustrias à volta. E falava da coragem dos irmãos, uns heróis! Bom proveito. Ele é que não queria saber de cantigas. Etc., etc.
Neste breve exemplo, outras particularidades ressaltam. Em primeiro lugar, o período só aparentemente é um monólogo, pois facilmente se detecta o diálogo entre a mãe, a entusiasmar o seu menino a saltar do ninho e ele a resistir-lhe, e mais adiante também os incentivos mais desalmados do pai. Mas, além disso, o diálogo trava-se abertamente num dado quadro natural de costumes invocados, facilmente redutível a troca de esgares, fácil e convincentemente dados por um discurso indirecto, cuja entoação adequada lhe dá facilmente o carácter de discurso indirecto livre, de mímica entonacional. Ora, para esta conversão ser mais natural, as marcas processuais têm de ser mais acusadas, a fala deve representar bem o carácter cauteloso, desconfiado, medroso do protagonista, a feição empenhadamente colaborante da mãe, mais adiante o temperamento menos contemporalizador do pai, e tudo isso exige uma linguagem imediatamente colada às realidades, capaz de registar as pequenas variações de juízo prático, generalizações típicas de situações evidentes: Bom proveito. Ele é que não queria saber de cantigas». In Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Ladino-conto de Miguel Torga, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3.

Cortesia de Caminho/JDACT