«Este título ocorreu-me sem que eu ainda agora saiba ao certo porquê, e
de um modo obsessivo. Reconheço que a frase mãe-d'água já mexe de há muito
comigo; grafada assim, com um apóstrofo, lembro-me de a ter lido, numa
ressonância de lenda à esquina de uma rua, ou travessa, ou escadinhas, era
então estudante em Lisboa; mas o apóstrofo não corresponde à minha pronúncia
infantil nortenha, sem contracção vocálica e boleada por um ditongo que hoje me
soa um pouco ao galego: mãe diágua. Fico logo a ver uma fonte,
nascente, mina ou reservatório de aqueduto, mas com o líquido a borbulhar desde
o fundo, o que terá talvez que ver com outra expressão afim, olhos
de água, aliás um título ribatejano de Redol. Hoje os mitos
refugiam-se em constelações verbais como estas, que bastam para animar um
devaneio, sem qualquer necessidade de enredo ou lenda. E eis desde já uma coisa
que se liga à poesia de Eugénio de Andrade: a sua aura mítica, mas sem o alarde de qualquer mito, a sua
materialidade verbal ou frásica directamente presa a uma certa memória, como
que imemorial, quero dizer, uma
memória que mal precisa do suporte de um sujeito civil, porque irradia logo dos
usos de certas palavras em certas conexões, certas entoações, a evocar
flutuantes situações de fala, memória que se coa através de não se sabe que
interstícios comunicativos, ligados entre si, mas sempre de maneira nova a cada
leitura do poema.
A mãe-d'água do título surgiu, portanto, como um enigma a
decifrar; e a frase está aí ligada ao nome do poeta através de um ou que é também muito seu e
perturbante. Não se trata do ou de
disjunção (que, de resto, os semanticistas já consideram muito ambíguo no seu
estrito sentido lógico); não é o ou
de certas subtitulações muito em moda no século XVIII (Justine, ou les Malheurs de la Vertu); é um ou de conexão resignadamente imprecisa,
aberta às disponibilidades receptivas do leitor ou destinatário, e que num seu
belo poema se desdobra em ou, se preferes,
e que, aí mesmo (como noutros poemas), equivale a coisas ou referências
puramente virtuais, marcadas por um como
se, um como quem, e, outras
vezes, nos convida a arbitrar entre sinónimos de criação meramente contextual pássaro
ou rosa ou mar, ou entre um rosário de imagens a apontar para o objecto
de um mesmo ardor. Podemos generalizar a toda a obra de Eugénio o âmbito desta disjunção que se oferece ao leitor. Com efeito,
e tal como nas nossas melhores poesias paralelísticas do século de 1200, embora
abandonando qualquer rigidez arcaica de ordem estrófica ou outra, os seus
poemas avançam por modulação contínua das imagens ou frases, como que entre
coisas disjuntas mas afins, aleatórias mas afinal consequentes, num certo enrredar
das palavras com aquele grande silêncio em que elas se perfazem.
Falei há pouco na disseminação dos mitos antigos, cuja real vitalidade
acaba por se abrigar em simples junturas verbais que, despercebidamente, nos
brincam na boca e que certos poetas conseguem coagular e chamar à atenção em
textos surpreendentes. Eugénio parece
que precipita os mitos em cristais, mas de uma substância que escapasse a
qualquer fórmula química ou a quaisquer eixos definidos de cristalização, e que
todavia sugerissem a precisão de uma sua especial química ou cristalografia. Já
certos românticos (e deles há ecos em Eça e Antero) explicaram a importância
moderna (pós-renascentista) da música como sendo o indispensável sucedâneo da
mitologia, e também dos dogmas e dos ritos solenes, claramente em agonia, apesar
de apoiados por tantos artifícios ou próteses: a própria astrologia
morre entre Kepler e Newton, a segregar uma mecânica que é tão terrestre como
celeste; a alquimia morre entre Paracelso e Niels Bohr a segregar
estruturas moleculares, atómicas e quânticas. Fazem-se ainda hoje prodígios de elucubração
metafísica (talvez sempre, no fundo, teológica) para ressalvar a vigência de
quaisquer mitos esotéricos ou cabalísticos, a pretexto de contradições
teoréticas que há nas ciências, contradições inevitavelmente nascentes a cada
passo em frente e até propulsoras do próprio progresso racional e de uma
eficácia técnica crescente (de que o esotérico nem prescinde). Mas para quê
tanta freima fideísta, se o melhor de todos os mitos subsiste, despercebido, na
mais correntia das frases e nos actos de comunicação, e comunicação tem até,
etimologicamente, que ver com comunhão: aquilo que ainda vive das religiões ou mistérios
mora, afinal, no grande mistério quotidiano de as pessoas se falarem, e de cada
qual de nós se identificar, sem dar por isso, a qualquer outro na alteridade (a
ambos comum) da própria fala». In Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Mãe-D’Água,
ou a Poesia de Eugénio, Boletim da 63ª Feira do Livro, 1993, Editorial
Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3.
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