O rapto de D. Mécia. D. Mécia e Sancho II
«(…) Entre reis e clérigos, a vida quase nunca foi fácil em Portugal.
Depois de Afonso Henriques ter tido em homens da Igreja alguns dos maiores
amigos e aliados e mantido com outros relações baseadas no tumulto e na
truculência, a descendência não teria história mais simples. Na verdade, Roma teve durante muito tempo os olhos
postos naquele jovem reino no extremo ocidental da Europa, olhos de desconfiança,
olho para o negócio, olhar de atenção, curiosidade ou cautela, é difícil dizer.
Se Afonso não tivesse vivido tão longamente como viveu, poderia não ter chegado
a ver sequer o reconhecimento oficial da independência de Portugal pelo Papado.
Saiu-lhe da pele e dos bolsos aquela doce notícia, chegada quando teria por
volta de 70 loucos anos. O filho e sucessor no trono, Sancho I, também sofreria
o seu bocado para impor o poder temporal naquela Baixa Idade Média, onde bispos
e cardeais ainda se confundiam com príncipes da terra. É que o reconhecimento
papal da legitimidade dum reino não tinha garantia vitalícia; devia ser
renovado anualmente, a troco duma generosa prestação paga a Roma.
Sancho, sabendo bem que o pai pagara para 1á de muitas prestações a fim
de acelerar a resolução do processo, entendeu que tinha crédito junto da banca
pontifícia e que, portanto, era justo que, pelo menos por uns poucos anos, Portugal
nada tivesse de pagar. Ora Urbano III
tinha uma leitura diferente desta economia das fronteiras e tanto reclamou e
ameaçou que Sancho I lá regularizou as contas. Ainda assim, a renda só
garantia a paz com o Papa, porque com alguns clérigos nacionais o ambiente
roçava a guerra. A Igreja não aprovava
o casamento do primogénito do rei, Afonso, com D. Urraca, filha do rei de Castela
e parente do noivo ainda antes do sétimo grau, o que violava a lei canónica.
O bispo do Porto, Martinho Rodrigues, recusou-se a celebrar a cerimónia e, em
resposta, levou com a fúria de Sancho:
o rei mandou prender o bispo durante alguns meses, arrasar as casas dos seus
apoiantes e fez entrar nas igrejas, excomungados e interditos. Curiosamente, a
embirração de Sancho só se manifestava mesmo diante de padres e bispos porque,
na realidade e tal como o pai, era um cristão fervoroso. Quando esse seu
primogénito, Afonso, era apenas um adolescente de 15 anos, a morte esteve mesmo
ali à porta para levá-lo. Supõe-se que sofria duma variante de lepra, incurável
para os padrões de época. Esgotados os
recursos médicos, que fez Sancho? Ouviu falar duma santa que era muito cultuada
em Basto, uma monja que teria vivido no século X e a quem chamavam Senhorinha. A origem do nome
estava envolta em mistério: é possível que se devesse ao facto de ter ficado
órfã de mãe muito cedo, passando a ser a senhorinha
da casa e assim tratada pelo pai, um fidalgo da região, mas também se coloca a hipótese
de uma origem mais prosaica: ser anã, e sabe-se como se atribuíam então aos anões obscuros
poderes sobrenaturais. A razão de ser do nome, na verdade, era apenas o
princípio da difusa história de uma personagem da qual ainda hoje pouco se sabe
(em Basto, na Ponte da Misarela, ainda há quem baptize as crianças por
nascer, aspergindo a barriga das mães com água do rio, em nome de Senhorinha),
mas sabia-se o essencial: que o túmulo da santa era destino de romarias. Que
peregrinos de toda a parte ali se dirigiam para rezar e que, em resposta, os
seus pedidos eram miraculosamente atendidos. Sancho I montou o cavalo e
arrancou para Norte. Em Basto, foi como peregrino anónimo: dirigiu-se à igreja da
santa, ajoelhou-se diante do sepulcro e rezou pela cura do filho. Por
intercessão ou não de Senhorinha
e, portanto, milagre ou casualidade, a verdade é que Afonso se curou.
A história é atestada por um documento do ano de 1200 assinado pelo rei, em que doa à comunidade das monjas de Basto
o couto em volta (há mesmo quem diga que o rei em pessoa marcou no terreno
os limites da propriedade). Um gesto terno do extremoso pai Sancho, esta
atenção para com o jovem Afonso, sobretudo se tivermos em conta que teve mais
18 filhos e que não lhe faltava com que se preocupar. Mais curioso ainda é que,
depois de ter ficado aparentemente a dever a vida a uma intervenção de Deus
Nosso Senhor, mediada por alguns agentes privilegiados, Afonso se tornaria no primeiro rei português a ser excomungado pela
Igreja cristã. É que Sancho, o
Povoador, morreu onze anos depois e o filho miraculado sucedeu-lhe como
Afonso II, o Gordo. Com efeito e ao
contrário do habitual, o cognome não era feliz, mas, ao que parece, a cura da
doença que o afectara na adolescência não fora completa. Afonso II viveria sempre
num estado de saúde debilitado e sofria, provavelmente, daquilo a que hoje
chamaríamos obesidade mórbida. Chegado ao trono, deu início a uma guerra
que já se vinha adivinhando: a guerra
entre a Coroa e o clero, resultado do aumento de poderes da primeira
e consequente limitação dos poderes do segundo». In Alexandre Borges, Histórias
Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras, Lisboa, 2012, ISBN
978-972-46-2131-9.
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