Ramalho Ortigão ou o Republicanismo pequeno-burguês
«(…) O melhor testemunho
que temos deste primeiro período da influência intelectual de Antero
na geração estudantil coimbrã dos anos 60, é talvez o de Eça de Queirós,
num texto evocativo do poeta e publicado em 1896. Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou Maio,
atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da
Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas da lua, que
nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava. A sua
face, a grenha densa e loura com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais
escuro, frisada e aguda, à maneira sírica, reluziam, aureoladas. (...) Parei,
seduzido, com a impressão de que não era aquele um repentista picaresco ou
amavioso, como os vates do antiquíssimo século XVIII, mas um Bardo, um Bardo
dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades. O homem, com efeito,
cantava o Céu, o Infinito, os mundos que rolam carregados de humanidade, a luz
suprema habitada pela ideia pura, e:
... os transcendentes
recantos
aonde o bom Deus se
mete,
sem fazer caso dos
Santos,
a conversar com
Garrett!
Deslumbrado, toquei o
cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo:
- É o Antero!...
E, mais adiante, Eça
evoca o primeiro encontro a sós com Antero, dando-nos dele, com invulgar
sentido psicológico, uma imagem verdadeiramente nietzschiana: Intimidade, porém, com aquele que eu depois
chamava Santo Antero, só verdadeiramente começou na manhã em que o
visitei, com muita curiosidade e muita timidez, na sua casa do Largo de S.
João. (...) Fascinado, surdi do vão da janela onde me refugiara, e parando à
borda da mesa: - Oh Antero, quanta
ordem você tem na destruição! Ele dardejou sobre mim dois olhares devoradores.
Depois, considerou, ainda enrugado, a pilha acertada de papéis cortados e, um
sorriso, aquele sorriso de Antero que era como um sol nascente, iluminou, fez
toda clara e rósea a sua boa face onde havia um não sei quê de filósofo de
Alexandria e de piloto do Báltico: - O
ritmo, murmurou, é necessário mesmo no delírio. Isto passou-se, como diz
ainda Eça, na Coimbra de tão
lavados e doces ares, em 1862
ou 1863, essa Coimbra que vivia num grande tumulto mental com a chegada
por caminho de ferro, vindos da França e da Alemanha, de torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas,
sentimentos, interesses humanitários... Ou seja, pêle-mêle, leituras
de Michelet, Hugo, Taine, Vico, Hegel, Proudhon, Heine, Baudelaire e Darwin. Eça
descobre mesmo, com deslumbramento, a Bíblia!
Mas o que Eça descobre, sobretudo, como o fizera já Antero, é a Humanidade. A geração de Antero
e de Eça
começa a amar a Humanidade, como há
pouco, no ultra-romantismo, se amara Elvira, vestida de cassa branca ao luar.
Na altura em que Eça
encontra Antero, já este tinha publicado os primeiros Sonetos (1861)
e Béatrice (1863),
mais tarde inclusos nos Sonetos
Completos. Mas é com as Odes
Modernas, livro publicado em 1865
(um ano depois da Visão dos Tempos
de Teófilo Braga) que Antero inicia um novo período na literatura
portuguesa, período a que António Sérgio, muito justamente, chamou terceiro romantismo. De facto, se
as Odes Modernas se
separam radicalmente do romantismo de Castilho, designado pelo mesmo
António Sérgio o segundo romantismo,
elas retomam os grandes temas do primeiro
romantismo de Herculano, isto é, as supremas
preocupações humanistas, universalistas (em Herculano, mais nacionalistas do
que universalistas) e, sobretudo, sociais que já Herculano anunciara e que
provinham em linha recta dos primeiros românticos alemães, mais do que dos
românticos franceses, embora Vítor Hugo influenciasse nitidamente Antero
nesta primeira fase. Romantismo, portanto, predominantemente filosófico, o
mesmo que marcou a poesia de Novalis, de Hoelderlin, de Heine, como se pode ver
por este soneto das Odes Modernas
intitulado Tese e antítese, datado de 1870 e depois incluído nos Sonetos Completos:
Já não sei o que vale
a nova ideia,
quando a vejo nas
ruas desgrenhada,
torva no aspecto, à
luz da barricada,
como bacante após
lúbrica ceia!
Sanguinolento o olhar
se lhe incendeia...
Respira fumo e fogo
embriagada...
A deusa de alma vasta
e sossegada
ei-la presa das
fúrias de Medeia!
Um século irritado e
truculento
chama à epilepsia
pensamento,
verbo ao estampido de
petouro e obus...
Mas a ideia é num
mundo inalterável,
num cristalino céu
que vive estável...
Tu, pensamento, não
és fogo, és luz!»
In Álvaro Manuel Machado, A
Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária, Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Livraria Bertrand,
1986.
Cortesia do Instituto Camões/JDACT