Resumo
«(…) No dia em que Gonçalo
Mendes da Maia, o velho fronteiro de Beja, cumpria os noventa e cinco anos,
ninguém saíra, pelo arrebol da manhã, a correr o campo; e, todavia, nunca tão
de perto chegara Almoleimar; porque uma frecha fora pregada a mão num grosso
sovereiro que sombreava uma fonte a pouco mais de tiro de funda dos muros do
castelo. Era que nesse dia deviam ir mais longe os cavaleiros cristãos: Lidador
pedira aos pajens o seu lorigão de malha de ferro e a sua boa toledana. Trinta
fidalgos, flor da cavalaria, corriam à rédea solta pelas campinas de Beja;
trinta, não mais, eram eles; mas orçavam por trezentos os homens d’armas,
escudeiros e pajens que os acompanhavam. Entre todos avultava em robustez e
grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam,
como flocos de neve, sobre o peitoral da cota d’armas, e o terrível Lourenço
Viegas, a quem, pelos espantosos golpes da sua espada, chamavam o Espadeiro. Eram formoso espectáculo o
esvoaçar dos balsões e signas, fora de suas fundas e soltos ao vento, o cintilar
das cervilheiras, as cores variegadas das cotas, e as ondas de pó que se
alevantavam debaixo dos pés dos ginetes, como se alevanta o bulcão de Deus,
varrendo a face de campina ressequida, em tarde ardente de verão.
Ao largo, muito ao
largo, dos muros de Beja cai a atrevida cavalgada em demanda dos mouros; e no
horizonte não se vêm senão os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parece
fugirem tanto quanto os cavaleiros caminham. Nem um pendão mourisco, nem um albornoz
branco alvejam ao longe sobre um cavalo murzelo. Os corredores cristãos
volteiam na frente da linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro
lado, embrenham-se nos matos e transpõem-nos em breve; entram pelos canaviais
dos ribeiros; aparecem, somem-se, tornam a sair ao claro; mas, no meio de tal
lidar, apenas se ouvem o trote compassado dos ginetes e o grito monótono da
cigarra, pousada nos raminhos da giesteira. A terra que pisam é já dos mouros;
é já além da frontaria. Se olhos de cavaleiros portugueses soubessem olhar para
trás, indo em som de guerra, os que para trás de si os volvessem a custo
enxergariam Beja. Bastos pinhais começavam já a cobrir mais crespo território,
cujos outeirinhos, aqui e ali, se alteavam suaves, como seio de virgem em viço
de mocidade. Pelas faces tostadas dos cavaleiros cobertos de pó corria o suor
em bagas, e os ginetes alagavam de escuma as redes de ferro acaireladas d’ouro
que se defendiam. A um sinal do Lidador, a cavalgada parou; era
necessário repousar, que o sol ia no zénite e abrasava a terra; descavalgaram
todos à sombra de um azinhal e, sem desenfrear os cavalos, deixaram-nos pastar alguma
relva que crescia nas bordas de um arroio vizinho.
Tinha passado meia hora,
por mandado do velho fronteiro de Beja um almogávar montou a cavalo e
aproximou-se à rédea solta de uma selva extensa que corria à mão direita:
pouco, porém, correu; uma flecha desferida dos bosques sibilou no ar: o
almogávar gritou por Jesus: a flecha tinha-se embebido ao lado: o cavalo parou
de repente, e ele, erguendo os braços ao ar, com as mãos abertas, caiu de bruços,
tombando para o chão, e o ginete partiu desenfreado através das veigas e
desapareceu na selva. O almogávar dormia o último sono dos valentes em terra de
inimigos, e os cavaleiros da frontaria de Beja viram o seu transe do repousar
eterno. - A cavalo! A cavalo!, bradou a uma voz toda a lustrosa companhia do Lidador;
e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha dos ginetes,
soou uníssono, quando todos os cavaleiros cavalgaram de um pulo; e os ginetes
rincharam de prazer, como aspirando os combates. Grita medonha troou ao mesmo
tempo, além do pinhal da direita. - Alá!
Almoleimar!, era o que dizia a grita». In Alexandre Herculano, A morte do Lidador,
Resumo, Antologia da Literatura Mundial, Logos, 1959.
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