Jaz aqui, na pequena praia extrema, o Capitão do
Fim. Dobrado o Assombro, o mar é o mesmo: já ninguém o tema! Atlas, mostra alto
o mundo no seu ombro. In Fernando Pessoa, ‘Mensagem’
«(…) Acabo de saber que a rainha D. Isabel de Castela autorizou a viagem
de descobrir de Cristóvão Colombo. Lançou a assombrosa novidade com uma voz
desdenhosa que disfarçava a sua arrelia; porém, ouvindo o murmúrio de descrença
e ira dos presentes, ergueu a mão num gesto apaziguador e acrescentou mordaz: -
Pelos vistos, a minha estimada prima tem mais confiança nesse rebolão do que
nós e crê que ele achará a derrota para a Índia navegando para Ocidente! Como
mais vale prevenir do que remediar, temos de nos adiantar na corrida, não vá esse
homem ter tratos com o demo e passar-nos à frente! Quando os risos cessaram,
el-rei prosseguiu, animando-se à medida que falava: - Mem Rodrigues e Pedro
Astoniga já partiram por mar para a Guiné e de lá seguirão, através da Tamala
dos Fulas, para o interior da África, a fim de buscarem também ai novas do
Preste João, o descendente do grande Salomão e da rainha de Sabá, pois João
Afonso de Aveiro ouviu dizer ao rei de Benim que, a vinte luas de andadura para
oriente das suas terras, existe o reino cristão do Ogané, a quem muitos outros
povos prestam homenagem e fazem grandes peregrinações para receberem das suas mãos
uma cruz de latão que veneram como santa relíquia.
Fez uma pausa e o seu olhar sombrio varreu a sala até pousar nele, perscrutador,
como se estivesse a avaliá-lo. Sentiu um arrepio de angústia eriçar-lhe a pele.
A armada de Bartolomeu Dias, com os seus capitães João Infante e Diogo
Dias, não tardará em sair rumo ao Congo para daí prosseguir viagem até
descobrir a passagem para o Oriente. Levará com ele os dois negros salteados
por Diogo Cão para os devolver à sua terra e quatro degredados que deixará
nesses lugares, onde dirão donde vêm e buscarão saber dos seus habitantes se
ali chegaram novas do Preste João.
Fez nova pausa como se esperasse alguma pergunta, mas não era nenhuma
surpresa que el-rei lhe desse alguns desses condenados que se salvavam da forca
ou do cutelo oferecendo-se para explorar novas terras, pois Sua Alteza usava dizer
a quem disso se espantava que lhes dava a
vida porque um homem custa muito a criar e havia aí muitas ilhas para povoar.
Como ninguém falasse, o rei João dirigiu-se a Pêro da Covilhã e a Afonso de
Paiva: - Assi, tereis acção concertada
com estes vossos companheiros e todos levarão cartas minhas para o Preste. Tu,
Pêro, rumarás ao Levante, em busca da rota das especiarias, e tratarás de saber
se há mesmo um Preste João das Índias, como dizem os antigos, enquanto tu,
Afonso de Paiva, seguirás na Etiópia até achares esse Negus que dizem ser o
verdadeiro Presbítero João. Levareis estas pastas de latão, com letras talhadas
em língua portuguesa, arábica, latina, grega e hebraica, para mostrardes ao
Imperador e a quem bem vos parecer. Mestre Rodrigo entregou-lhes as
pastas, da feição de uns grossos medalhões, onde se lia ElRey Dom João de Portugal, Irmão dos Reys Christãos. Tendes tudo
aquilo de que haveis mister: cartas,
mapas, roteiros?, perguntou ainda.
- Sim, meu senhor, Afonso de
Paiva curvou-se numa profunda vénia. - Os vossos astrónomos e cosmógrafos são
os melhores do mundo!, gabou Pêro da Covilhã, saudando com igual acatamento. -
Sim, bem o sei, disse João II, sorrindo na direcção da sua junta de sábios, os
quais se inclinaram também em sinal de agradecimento. Prestai agora o vosso
juramento sobre este Livro Sagrado, ordenou Diego de Orty, pondo-lhes diante
uma Bíblia e uma folha escrita. Um a um, pousaram a mão direita sobre o livro
de capas vermelhas e letras douradas, lendo em uníssono as palavras do texto do
bispo: - Eu, Pêro da Covilhã... Eu,
Afonso de Paiva... Eu, Bartolomeu Dias...Eu, João Infante... Eu, Diogo Dias...
juro que na execução e obra deste descobrimento que vós, meu Rei e Senhor, me
mandais fazer, com toda a fé, lealdade, vigia e diligência, eu vos hei-de
servir, guardando e cumprindo vossos regimentos que para isso me forem dados,
até tornar onde ora estou, ante a presença de vossa real Alteza, mediante a
graça de Deus em cujo serviço me enviais. Acabado o juramento,
ajoelharam e, curvando as cabeças, receberam a bênção do bispo, indo em seguida
beijar a mão que el-rei lhes estendia: - Ide os quatro, com a graça de Deus,
mas deixai comigo a Bartolomeu Dias, que temos um ultimo negócio a tratar. Que teria el-rei para lhe dizer ainda?
Os quatro homens ergueram-se e, fazendo as suas cortesias de despedida,
abandonaram a sala, seguidos pelo seu olhar apreensivo». In
Navegador da Passagem, A
História de um Descobridor de Mundos, que o Mundo Ignorou, Deana Barroqueiro, Porto Editora, 2008,
ISBN 978-972-0-04162-3.
Cortesia de Porto Editora/JDACT