«(…) A crítica
platónica, porém, não visa o modo de funcionamento dos modelos educativos da
sociedade, isto é, a ideia de que a educação na pólis devia orientar-se de
acordo com o princípio da emulação. Neste aspecto a sua é uma proposta de continuidade,
no sentido em que retoma a ancestral tradição de uma didáctica assente no
paradigma como forma de induzir comportamentos. Daí que, na sua perspectiva, o discurso
filosófico seja melhor do que o poético ou o retórico, não apenas por dizer a
verdade, mas também por indicar o caminho certo, mostrando exemplos a serem imitados
pelos que os ouvem. Nada poderia, de facto, estar mais longe da tragédia, mesmo
a de autores como Ésquilo ou Sófocles. Aquilo que é, segundo Hegel, a
verdadeira essência do modo dramático, a representação de conflitos, por si só
remetia para a pluralidade de pontos de vista e de respostas às grandes
questões debatidas no Teatro, verdadeiro fórum de discussão, ao lado da
Assembleia ou mesmo dos Tribunais. Acresce ainda que a ausência da voz
autoritária de um narrador, mediando entre as personagens e os espectadores,
dificultava o discernimento sobre a suposta lição que o espectáculo trágico
pretendesse mostrar. Com efeito, a tragédia grega inaugura, de forma mais ou menos
consciente, e com diferentes graus de percepção por parte dos seus
destinatários, um outro tipo de pedagogia, a que poderemos chamar dialéctica,
ou talvez ainda com maior propriedade, dilemática, dado que mais do que a
procura de uma resposta, o que parece interessar aos dramaturgos é levantar
problemas, os quais se revelam, na maior parte dos casos, de difícil senão
mesmo impossível solução. A natureza da tragédia, ou a forma que ela foi
tomando às mãos dos poetas trágicos, não se coadunava, portanto, com o
dogmatismo moral dos seus detractores; e, além disso, a própria criação de
significado dramático dependia, em grande parte, das emoções suscitadas pelo
espectáculo. Daí a rejeição platónica.
Assim não entendeu, como
sabemos, Aristóteles, o grande responsável pela viragem crítica que suspendeu o
juízo censório sobre a Poesia, fundamentado por considerações de ordem ética e
filosófica, e reabilitou as emoções, como factores positivos da experiência
estética, não apenas por proporcionarem o prazer e o deleite dos ouvintes, como
Górgias muito antes já defendera, mas sobretudo pelo seu papel no processo de
conhecimento que essa mesma fruição estética implica. De facto, na sua famosa
definição de tragédia grande relevo é dado às emoções, designadamente, ao
terror e à compaixão, que o Estagirita investe de um poder cognitivo. A análise
da tragédia do séc. V, porém, e particularmente da tragédia sofocliana, permite-nos
concluir que o papel das emoções no processo de conhecimento fora já alvo da
reflexão dos próprios poetas. Assiste-se, com efeito, principalmente nas
últimas décadas do século, a uma viragem da tragédia sobre si própria, em
relação directa com a crescente necessidade de se afirmar enquanto discurso com
dignidade e valor para a pólis.
No que diz respeito a
Sófocles são conhecidas as suas incursões por uma reflexão mais teórica acerca
da arte dramática. Segundo a Suda, uma enciclopédia do séc. X, o autor terá
chegado a escrever um livro sobre o Coro, infelizmente desconhecido para
nós. Também a referência de Aristóteles (Poética) às suas afirmações
sobre o desenho das personagens, e as de Plutarco (Moralia), segundo o
qual o dramaturgo teria tecido algumas considerações sobre a evolução do seu
estilo dramático, constituem um sinal de que à sua actividade como poeta
trágico não era alheia a reflexão acerca da própria arte que cultivava». In Marta
Várgeas, A Poética da Tragédia Sofocliana, Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.
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