«Os Livros de
Linhagens, a que no século XVI se deu também o nome de Nobiliários, são quatro obras
escritas durante a Idade Média onde se descreve a genealogia das principais
famílias nobres no reino. O primeiro, também chamado Livro Velho e o
quarto, conhecido como Nobiliário do Conde Pedro de Barcelos,
estão completos. Dos restantes chegaram até nós apenas fragmentos (Segundo de Linhagens, ou Segundo Livro Velho, e Terceiro Livro de Linhagens, ou Nobiliário da Ajuda). O Livro do Conde Pedro de Barcelos
é o mais desenvolvido dos quatro, tendo o autor pretendido apresentar um resumo
da história universal. Pedro, conde
de Barcelos, era filho natural do rei Dinis I e bisneto de Afonso X. Os Livros de Linhagens foram
publicados no século XIX por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Historica,
volume dedicado aos Scriptores». In Projecto Vercial
Segundo livro de linhagens
Lenda de Gaia
«(…) E el lhe respondeu – «ca o teu amor» –: e ella lhe dice
que vinha a morrer, e elle lhe respondeu, ca pequena maravilha; e ella dice a
donzela que o metese na camara, e que lhe não dese que comese nem que bebece; e
a donzela pensou del sem mandado da rainha; e el jazendo na camara chegou
Abencadão e derãolhe que jantace, e depois de jantar foise para a rainha; e
desque fizerão seu plazer, disse a rainha – «se tu aqui tivesses rei Ramiro,
que lhe farias?» – O mouro então respondeu – «o que el a mi faria: matalo.» –
Então a rainha chamou Ortiga que o adusese da camara, e ella assim o fez, e
aduseo ante o mouro, e o mouro lhe disse – «es tu rey Ramiro?» – e elle respondeu
– «eu sou» – e o mouro lhe perguntou – «a que vieste aqui?» – elrey Ramiro lhe
disse entom – «vim ver minha molher que me filhaste a torto; ca tu havias
comigo tregoas, e nom me catava de ti:» – e o mouro lhe disse – «vieste a
morrer; mas querote perguntar: se me tiveces em Mier que morte me darias?» –
Elrey Ramiro era muito faminto e respondeolhe assim – «eu te daria um capão
assado e huma regueifa, e fariate tudo comer, e dartehia em cima en sa çapa
chea de vinho que bebesses: em cima abrira partas do meu curral, e faria chamar
todas as minhas gentes, que viessem ver como morrias, e fariate sobir a um
padrão, e fariate tanger o corno, ate que te hi sahice o folego.» – Então
respondeo Abencadão – «essa morte te quero eu dar.» – E fez abrir os currais, e
fezeo sobir em hum padrão que hi entom estava; e começou rey Ramiro enton em
seu corno tanger, e começou chamar sua gente pelo corno que lhe acorressem, ca
agora havia tempo; e o filho como ouvio, acorreolhe com seus vassallos, e
meterão-se pela porta do castello, e el deceuse do padrom adonde estava, e veyo
contra elles, e tirou sa espada da bainha, e descabeçando ata o menor mouro que
havia em toda Gaya,
andarão todos a espada, e nom ficou em essa villa de Gaya pedra sobre pedra que
tudo não fosse em terra; e filhou rey Ramiro sa molher com sas donzellas, e
quanto haver ahi achou, e meteu na nave, e quando forão a foz d'Ancora
amarrarão as barcas, e comerão hi e folgarão, e D. Ramyro deitouce a dormir no
regaço da rainha, e a rainha filhouce a chorar, e as lagrimas della caerão a D.
Ramiro pelo rostro, e el espertouse, e diselhe, porque chorava, e ella diselhe
– «choro por o mui bom mouro que mataste» – e então o filho que andava hi na
nave ouvio aquella palavra que sa madre dissera, e disse ao padre – «padre não
levemos comnosco mais o demo.» – Entom rey Ramiro filhou uma mo que trazia na
nave, e ligoulha na garganta, e anchorouha no mar, e des aquella hora chamarão
hi Foz d'Ancora. Este Ramiro foice a Myer e fez sa corte, e contoulhe tudo como
lhe acaecera, e entom baptisou Ortiga, e casou com ella, e louvoulho toda sa
corte muito, e poslhe nome D. Aldara, e fege nella hum filho, e quando naceo
poslhe o padre o nome Albozar, e disse entom o padre, que lhe punha este nome
porque seria padre e senhor de muito boa fidalguia; e morreo rey D. Ramiro.
Deos lhe aya saude a alma, requiescat in pace». In Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores.
Terceiro Livro de linhagens
Batalha do Salado
Os castellaãos ouueram sa contenda grande com os mouros em
pasar a ribeira do salado que era em riba do mar. Esto durou gram dia antre
eles porque as azes dos mouros se refrescauam e hy moreo grandes gentes. Mais
porque os castellaãos eram boõs caualeiros ouueromnos de forçar e pasarom a
ribeira. Ali foi a lide tam grande antre eles que todo home que os uise
caualeiros castelaãos bem poderia dizer que melhores caualeiros nom auia no
mundo. Os mouros se refrescauam mais e mais, e porque uimham folgados feriamnos
de toda força. E estando em esta presa os mouros uirom em como os da sa ley
eram uençudos por os portugueeses, e em como os ja seguiam dultarom que se mais
durasem na lide que os portugueeses lhi dariam nas costas, e começarom de
fugir, pero esto nom lhis ualeo muyto, ca os portugueeses lhis sairom adeante.
Ali foy a morte deles grande porque os castellaãos os leuauam em encalço e hyam
ferindo e deribando em
eles. El Rei almofacem quando uyo os seus sayr do campo dise
muyto alta uoz os olhos contra o ceo, «Ay deos poderoso, ay deos uencedor,
porque desemparasti este uelho coytado de presa de mezquiidade, coberto de
mingua de uergonha sobre todolos Reis do mundo? Ay uelho, oie perdiste o teu
nome que auyas em toda eyropa em toda africa e em asia.» Lançaua as
maãos da barua que tiinha muy longa e caã e mesauaa toda e daua grandes feridas
em seu rostro. En aquel tempo chegou alcarac a el e diselhi, «Senhor esto nom
uos compre porque quando a senha e a yra de deos uem hu lhe praz todolos
conselhos e saberes nom ualem rem». In Livros de Linhagens, Projecto Vercial, Portugaliae Monumenta Historica,
volume dedicado aos Scriptores,
Alfarrábio da Universidade do Minho, 1996-2013, Wikipédia.
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