Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«(…) Neste sentido, a mimesis
praxeos, a imitação da acção humana, própria da tragédia, que põe em
cena o homem em conflito consigo próprio, o dissecar da alma humana e das
paixões, que implicam um agir consciente ou involuntário, está em perfeita sintonia
com a imitatio stili, porquanto o código petrarquista lhe confere
naturalidade expressiva e vigor experiencial. Determinantes na fixação de
modelos trágicos no século XVI são dois italianos, teorizadores da arte
dramática, Giovan Trissino e Giraldi Cinzio, pioneiros do teatro regular
europeu e corifeus da tragédia grega e senequiana, respectivamente. Assim se
revestem de particular interesse o seu pensamento crítico, a sua concepção
estética. Giraldi Cinzio proclama a excelência da tragédia senequiana, tão
apreciada desde os finais da Idade Média e por demais vulgarizada na época em
traduções e comentários, e a sua superioridade sobre a grega. É também o modelo
senequiano que segue Ferreira, ao
compor o primeiro texto da sua tragédia. Esta preferência está em relação
intrínseca, em primeiro lugar, com o ambiente que a viu nascer e, em segundo
lugar, com os padrões de referência que inicialmente motivaram o seu autor, a
tragédia novilatina de inspiração senequiana, e de modo particular a Ioannes
Princeps de Teive, e a própria produção trágica do Cordovês.
No entanto, António
Ferreira desprende-se intencionalmente do pendor oratório e reflexivo
de cariz senequiano e vai deixar-se cativar pelo modelo dramático grego, que
Trissino representava, e que na sua singeleza e expressão depurada, estava mais
de acordo com o discurso poético quinhentista. No seu fascínio pela
musicalidade, pela harmonia e pelas imagens, pelas sugestões de carácter
linguístico e ideológico, pelas reflexões líricas, pela suavidade, melodia e
fluidez do verso, Trissino pretendia atingir a vivacidade e o colorido, de que
a poesia antiga reveste as coisas. A evolução dos gostos de Ferreira, na linha de Trissino, no
sentido do teatro grego, que a edição definitiva da Castro documenta, comprende-se pelos ideais estéticos
que perfilhou. Os códigos poéticos do autor da Castro, que
é também, com o seu livro de sonetos, o autor do primeiro cancioneiro
petrarquista entre nós, vão ao encontro da contenção, sublimidade e lirismo da
linguagem da tragédia clássica, definida por Aristóteles pelo ritmo, pela
melodia e pelo canto. Aliás o próprio limae labor do nosso poeta
trágico, que ainda hoje pode ser apreciado, confere uma notável singularidade
estética à Castro. Ao ver a
sua tragédia representada, como o título da primeira edição documenta, Tragédia muy sentida de Dona Inês, agora
novamente representada (Manuel de Lira, 1587), Ferreira vai trabalhar o seu texto e
revelar não apenas um perfeito domínio formal, mas um apurado sentido da
imagem, com predilecção por contrastes de lexemas e sintagmas, por antíteses ao
gosto petrarquista, em que a ordo artificialis do discurso
poético é posta ao serviço da expressão dialógica e de uma musicalidade fluida,
tão adequada aos gostos do público.
O papel condicionador e
fundamental do público, para que a tragédia se realize como espectáculo, a theatrokratia,
é já sublinhado por Aristóteles (Poética). Considera o Estagirita
que a representação amplia a intensidade do texto dramático, através da música
e do espectáculo, os dois recursos que tornam a tragédia superior à epopeia.
Mais, a empatia autor / actor/ público é indispensável no processo de
composição e teatralização, de forma a que todas as virtualidades dramáticas e
psicagógicas sejam atingidas. Assim sendo, o poietes tem de ter,
no seu horizonte, os gostos, interesses e expectativas do público, do
auditório, em quem pretende concitar emoções e o consequente prazer catártico,
primordial objectivo de toda a representação. Expressivo do ponto de vista
poético-dramático e produto de uma profunda remodelação é o acto I da edição
definitiva da Castro, a que a
contaminatio genológica confere lirismo e narratividade. O I
acto, ou prólogo, segundo a designação aristotélica, inicia in medias res.
A abri-lo, a Castro, num cenário idílico, o locus amoenus,
dirige-se ao Coro em pseudo-estrofe de canção, insinuada por alusões toantes,
qual monódia lírica ao gosto de Eurípides:
Colhei, colhei alegres,
donzelas minhas, mil cheirosas flores.
Tecei frescas capelas
de lírios e de rosas; coroai
todas
as douradas cabeças.
Espirem suaves cheiros
de que se encha este ar todo.
Soem doces tangeres, doces cantos.
Honrai o claro dia,
meu dia tão ditoso, a minha glória
com brandas liras, com suaves vozes.
O diálogo com a Ama, que
se segue à entrada lírica, desenrola-se numa linguagem de extrema simplicidade,
em que predomina a reduplicatio adjectiva, por vezes em antítese
conceptual, a traduzir, em torrente de sentimentos e impressões, uma indefinida
sensação de euforia, sem que uma certa nota de melancolia deixe de se aperceber».
In
Nair Nazaré Castro Soares, Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama,
Universidade de Coimbra, As Artes de Prometeu, homenagem a Ana Paula
Quintela, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.
Cortesia da
FLUPorto/JDACT