«(…) Ora é precisamente
esta dúvida, se o mito do Protágoras reflecte a doutrina do Sofista, um
dos argumentos em que se fundamentam helenistas como M.L.West para negar a
Ésquilo a autoria do drama. Deixando de lado esta questão, voltemos ao nosso
ponto de partida: as duas longas falas em que Prometeu enumera os benefícios
que proporcionou aos homens. Aí o deus é apresentado, o herói cultural, e não
como o trickster que encontrámos em Hesíodo. Foi isto mesmo que salientou
Winnington-Ingram, ao escrever que o poeta
promoveu esta figura a partir do trickster do folclore até se tornar o
fundador da civilização, e do roubo do fogo até ser o inventor de todas as
artes. O Titã enumera, sucessivamente, os seus benefícios:
- a construção de habitações, com tijolos e madeira;
- o conhecimento dos astros, para saber distinguir as estações;
- o número;
- a escrita;
- a domesticação dos animais;
- a navegação;
- a arte de curar;
- a adivinhação e os sacrifícios aos deuses;
- a incineração.
É precisamente no meio
desta série que se situa a invenção do alfabeto, logo a seguir à do número,
cúpula
do saber. Esta superlativação do valor do número está de acordo com a
afirmação de Eliano, Varia Historia IV, de que Pitágoras dizia que a
sabedoria máxima está no número. Agora que, depois da tese de Riedweg,
já se pode falar de novo do papel do filósofo de Samos nos primórdios da
aritmética, lembremos que esta aproximação à frase de Eliano já foi feita há
mais de um século por Sinkes e Wilson no seu comentário ao drama, e que também
aí eles recordaram (e esta referência é só para os que aceitam a autenticidade
do Prometeu) que Cícero afirmou nas Tusculanas que Ésquilo
professava o Pitagorismo. À escrita é consagrado o v. 460:
……………….. e as
combinações com as letras,
memória de tudo,
trabalho criador das Musas.
É precisamente o v. 461,
não obstante a existência da varia lectio que, aliás, não afecta o
sentido, o que consagra a função desta forma do saber como uma dádiva das
Musas. E aqui surge o composto mousometora, de que Liddell-Scott registam
apenas esta ocorrência, como epíteto da Memória. A este propósito,
Griffith remete para o fragmento B11 a 36 Diels-Kranz do Palamedes de
Górgias, que também atribui às letras a função de ajudar a memória e recorda a
função de Mnemósine como mãe das Musas em passos bem conhecidos de Hesíodo, Teogonia
52-53, da Elegia 13 West de Sólon e do Teeteto 191d de Platão. Logo a
seguir, faz este comentário: Mnemósine é
mãe das Musas, como é bastante natural em poetas orais, ao passo que, para um
autor do séc. V, a escrita é a
fonte da memória. O comentário que acabamos de citar data de 1983. Nos últimos vinte anos, a questão
tem-se posto, porém, de outra maneira, pelo que toca à arte literária. Os
trabalhos de Latacz, que tem acompanhado de perto as novas escavações de Tróia,
dirigidas por Korfmann, e os de Powell, que se tem dedicado especialmente à questão
das origens do alfabeto grego, têm feito recuar cada vez mais a possível data de
composição dos Poemas Homéricos. Este último helenista resume assim o
estado da questão no seu livro mais recente, Homer (Oxford, 2004): De acordo com uma explicação plausível,
Homero ditou os seus poemas a alguém, em certa época, talvez na ilha de Eubeia,
no princípio do séc. VIII a.C. Por sua vez, Latacz defende a tese de que
Homero conhecia bem, não só a arte da poesia oral, que assentava no ritmo do
hexâmetro, mas também a técnica da escrita, que procura conciliar na sua obra. Desnecessário
será acentuar que estas teorias não têm aceitação universal, nenhuma teoria sobre
a Questão Homérica a tem, e outros grandes helenistas, como, por exemplo, West,
continuam a sustentar que Hesíodo é
anterior a Homero. Mas, de qualquer modo, a mais antiga inscrição grega
até agora encontrada está estratigraficamente datada de c. 775 a. C.. E uma das
que se lhe seguem em antiguidade (curiosamente, ambas achadas na Península
Itálica) deverá ser de c. 740 a. C.. No caso desta última,
trata-se de hexâmetros que aludem ao herói da Ilíada, Nestor. Tudo isto,
segundo o já citado Powell, será prova da teoria deste helenista, segundo a
qual o
alfabeto grego teria sido criado para registar por escrito a epopeia. Lembremos
ainda que, quaisquer que sejam as reservas à tradição conservada por Cícero e
por Pausânias, já no séc. VI a. C. circulavam versões dos poemas de Homero, que
Pisístrato teria mandado juntar e que o diálogo Hiparco, do
pseudo-Platão, atribuía ao filho daquele tirano de Atenas a ordem de os
rapsodos os recitarem todos nas Panateneias, um após outro, tal como ainda hoje se faz». In
Maria Helena Rocha Pereira, As Artes de Prometeu, As combinações com as Letras,
Memória de tudo, Trabalho criador das Musas, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.
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