Formação intelectual
«(…) Apesar de Grapheus ter de dar os retoques finais a legatio (pois Góis nunca chegou a ser um
bom estilista em latim), e apesar de essa obra ter sido publicada sem o conhecimento
de Góis, devido à relutância que sentia em o fazer, ela representa o primeiro
passo que ele deu como pensador e marca uma viragem na sua carreira. No prefácio,
Góis presta o tributo devido a Johann Magnus por tê-lo iniciado no caminho em
que se viria a realizar como humanista. As relações de Góis com Magnus estão na
origem da sua dedicação a outra causa cristã, quando o arcebispo o associou a
um problema que o comoveu a fundo. No bispado de Upsala, Magnus devia ter tido
os Lapões sob a sua supervisão eclesiástica, mas esse povo, explorado por
príncipes cristãos, resistia tenazmente à conversão ao cristianismo. Góis
queria agir a favor dos Lapões, e quando Magnus lhe pediu que desse a conhecer
ao público a situação lamentável em que eles se encontravam, Góis redigiu um
sentido apelo, que acrescentou a legatio,
para que se lhes desse um melhor tratamento. Embora os encontros posteriores
entre os dois homens não fossem frequentes mantiveram uma amizade profunda que
se baseava na compreensão mútua e que os influenciou a ambos. Depois de Góis se
ter avistado com Magnus uma segunda vez, em Danzig, em 1531, tornaram a encontrar-se anos mais tarde em Itália, onde o
português estava a prosseguir os seus estudos e onde Magnus esperava participar
no projectado concílio de Mântua. O concílio não chegou a realizar-se e o
arcebispo, juntamente com Olaus, seu irmão, que o acompanhava, ficou sem
recursos financeiros. Góis fez um apelo ao Papa para que socorresse esse homem
que já sofrera pela causa da religião, mas esses esforços bem intencionados
foram em vão, e Magnus passou privações até morrer.
Os primeiros anos de preparação de Góis para a carreira humanística
foram também os anos de mais estreito contacto com os Protestantes e essa é que
é a verdade apesar duma afirmação curiosa que ele fez num relatório para os
inquisidores em Portugal, durante o seu julgamento em 1571-1572.
Lembrava aos acusadores que os erros religiosos que tinha cometido durante a
estada em Antuérpia se deviam à sua ignorância do Latim, que fazia com
que lhe fosse impossível debater com as autoridades na matéria. Esse argumento
não deixa de ter o seu quê de ironia, vindo como vinha dum humanista erasmista
como Góis, que estava bem ciente da insistência de Erasmo no estudo das línguas
clássicas como processo de melhorar o ensino cristão tradicional. A inclinação
que Góis revelou pela Reforma desde a chegada a Antuérpia até ao ano de 1538 deve ser interpretada em parte
como sendo o fruto da sua intimidade com Cornelius Grapheus, mas em última
análise é o próprio impulso interior que explica a forma favorável como Góis
reagiu ao clima espiritual de Antuérpia. A cidade estava dominada por
mercadores alemães que importavam e que difundiam ideias reformistas luteranas.
Na velhice Góis falou francamente com os inquisidores sobre os contactos
sociais que tivera com pessoas de Antuérpia que falavam da reforma e
introduziam práticas luteranas, e disse que tinha caído num hábito comum entre
homens e mulheres (isto é, o de errar quanto à verdade em religião),
rejeitando naquele tempo tanto as indulgências como a confissão oral. Na realidade
Góis assimilou muito mais completamente do que queria confessar à Inquisição (maldita) as inovações religiosas com que
esteve em contacto em Antuérpia». In Elisabeth Feist Hirsch, The Life and Thought of a Portuguese
Humanist, The Hague Netherlands, 1967, Damião de Góis, Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 2002, ISBN 972-31-0677-9.
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