«Deus afrouxa o impulso, já posso revisitar a cidade que tanto amei
contigo. Coisas pequenas: no jardim próximo da tua casa, uma criança abre as
asas no meio de uma toalha de pombos cinzentos, que esvoaça e o deixa lá em
baixo, a esbracejar. Há uma mulher jovem que passeia para cá e para lá no
jardim, vigiando a criança e falando ao telemóvel. - És um pulha. Digas o que disseres, és um pulha. E o
teu filho vai saber o pulha de pai que tem. Enquanto morria, não vi a minha
vida em câmara lenta nem vales verdejantes, nem sequer ouvi músicas celestiais.
Talvez seja possível morrer-se assim, como tantas vezes ouvi contar. Talvez até
seja possível que, no instante do estertor, o relâmpago do génio ponha na boca
de alguns as palavras redentoras. Sempre duvidei disso, mas tudo aquilo de que
duvidamos é possível, digo eu, agora que já não tenho o supremo prazer da
dúvida. A morte é um segredo bem guardado, o único de cujos direitos de autor
Ele não prescindiu. Posso contar-te a minha morte, aqui deste espaço sem
espaço, porque Ele sabe que já não me vais ouvir. Mas eu sei que vais
imaginá-la de muitas maneiras diferentes, e que, por as imaginares, todas essas
minhas mortes existem já, neste nosso íntimo espaço de inexistência. Morri em
eco, desdobrada. Morri com um sem-abrigo perdido no caminho para o meu útero,
morri porque o meu corpo decidiu gerar uma vida nova e se enganou. Percebi que
a morte abria as comportas do meu sangue, mas só no fim desse rio vermelho percebi
que levava comigo um filho impossível. A primeira sensação que experimentei,
depois de ter desmaiado de dor, foi um intenso perfume de bebé, um perfume quente
e azedo de leite bolçado. O balouço do sorriso de Deus apanhou-me de repente,
num rasgão de luz, e sentado no meu colo estava uma espécie de bebé minúsculo,
quase só um sorriso de bebé que parecia ter saído directamente do meu ventre
para o meu colo. Uma semente, uma pedra, uma coisa quente esvaindo-se de
felicidade, arrancando-me a dor. Que se desfez numa luz azul, com um vagido de alívio.
Então o balouço ficou mais leve e começou a girar durante um tempo que me
pareceu infinito por dentro de uma rosa de luz branca. As ondas de luz dessa
rosa em espiral explicavam-me tudo o que eu não sabia sobre a minha morte, e
muito do que eu esquecera sobre a minha vida. Coisas simples, como essa criança
que eu gerava numa parte inviável do corpo, no lugar cego e sábio da
inconsciência. E coisas ainda mais simples, inefáveis, como os defeitos de fabrico
da minha amizade por ti. Coisas irremediáveis e tranquilas. Meu Deus, deixa-me
aperfeiçoar nelas o primeiro concerto da minha eternidade. Ele abrandou o calor
do sorriso, as pétalas solares dessa rosa por onde eu subia afastaram-se, e o sopro
que eu sou desceu devagarinho sobre a nossa cidade. Não é o olhar de desdém inteligente
que se aprende nas janelas dos aviões, não. Já suspeitava que o olhar
rectangular que se despeja sobre o movimento desvairado das formigas humanas em
nada se aparenta à inclinação compassiva do olhar de Deus. Nesta primeira prega
da transcendência, neste noante à margem do teu tempo e da minha eternidade, o
meu olhar sem órbitas move-se por ampliações máximas de pormenores mínimos. Da criança
que quer ser pombo para as janelas fechadas da casa onde tu não estás, porque
foste velar o meu corpo. Deixaste a luz da casa de banho acesa, as portas do
roupeiro abertas e umas calças de bombazina vermelho-escuras enrodilhadas ao
lado da cama. Nem pareces tu.
Pensaste em mim enquanto
morrias? Dava muito dinheiro por esta resposta, desde que fosse a verdade.
Porque há a verdade, não é tudo tão relativo como tu querias ensinar-me. Há a
verdade, e era isso o que nos unia; que houvesse a verdade, navio absoluto.
Alguns outros concordariam connosco, mas à distância. A distância dos risos e
dos copos que se tornou a nova intimidade. Para ti, a verdade não era
inatingível, estarias já comigo naquela manhã de infância em que quis nadar até
ao navio do horizonte? Apanharam-me antes de lá chegar, com um barco a remos e
um par de bofetadas, o menino é doido? Vive-se melhor a inventar a verdade
todos os dias, dizem-me. Faz de conta que não morres. Faz lá. Nós os dois queríamos inventar tudo menos a verdade. Mesmo
que ela fosse nossa inimiga. Sobretudo quando ela era nossa inimiga. Queríamos
matar a verdade má e espalhar a verdade boa, o menino é doido?» In Inês
Pedrosa, Fazes-me Falta, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002, ISBN
972-20-2253-9.
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