Som e Pensamento
«Estou firmemente convencido de que é impossível falar de música.
Muitas são as definições de música que, na prática, se limitam a descrever uma
reacção subjectiva a ela. Para mim, a única definição verdadeiramente exacta e
objectiva é a de Ferruccio Busoni, o grande pianista e compositor italiano, que
disse que a música é ar sonoro. Diz tudo e nada, ao mesmo tempo.
Schoppenhauer, por sua vez, via na música uma ideia do mundo. Na música, como
na vida, só podemos de facto falar das nossas reacções e percepções pessoais.
Se eu tento falar de música, é porque o impossível sempre me atraiu mais do que
o difícil. Se isto faz algum sentido, tentar o impossível é, por definição, uma
aventura, e a aventura transmite-me uma sensação de actividade que me atrai
sobremaneira. E ainda por cima tem a vantagem de o fracasso ser não apenas
tolerado mas esperado. Por isso vou tentar o impossível e procurar estabelecer
algumas relações entre o conteúdo inexprimível da música e o conteúdo inexprimível
da vida. Não é a música, afinal de
contas, uma simples sequência de belos sons? John Locke escreveu no seu
tratado, a muitos títulos precursor, Alguns Pensamentos sobre a Educação,
publicado em 1693: Entende-se que a música tem alguma afinidade
com a dança, e um bom domínio de alguns instrumentos é altamente apreciado por
muitas pessoas. Mas desperdiça tanto tempo de um jovem para lhe proporcionar apenas
uma destreza moderada; e muitas vezes implica tão estranhas companhias que há
muito quem pense que é muito melhor poupá-lo: e tão poucas vezes tenho ouvido,
da parte de homens de talento e posses, louvar ou estimar alguém por ser
excelente em música que, entre todas as coisas que alguma vez constaram da
lista de méritos, penso que posso dar à música o ultimo lugar. Ainda hoje,
é frequente a música ocupar o último lugar nos nossos pensamentos relativos à
educação. Será a música, de facto, mais do que uma coisa muito agradável ou
fascinante de escutar, uma coisa que, por simples força do seu poder e
eloquência, nos dá ferramentas extraordinárias com as quais podemos esquecer a
nossa existência e a dureza da vida de
todos os dias? É claro que há milhões de pessoas que gostam de chegar a
casa ao fim de um longo dia de trabalho, pôr um CD e esquecer todos os problemas.
Eu, porém, entendo que a música nos dá também uma ferramenta muito mais
valiosa, com a qual podemos aprender coisas sobre nós mesmos, sobre a nossa
sociedade, sobre política, em suma, sobre o ser humano. Aristóteles, que
precedeu John Locke em quase dois mil anos, tinha a música em maior estima,
considerando-a um contributo valioso para a educação dos jovens: [...] Não é esta a única razão que os leva a
ocupar-se da música, mas também a utilidade que ela tem para o descanso. Ainda
mais: é preciso indagar se a sua natureza não será nobre de mais para se reduzir
a essa utilidade. [...] É precisamente nos ritmos e nas melodias que nos deparamos
com as imitações mais perfeitas da verdadeira natureza da cólera e da mansidão,
e também da coragem e da temperança, e de todos os seus opostos e outras disposições
morais (a prática prova-o bem, visto que o nosso estado de espírito se altera
consoante a música que escutamos). [...] Por tudo isto se torna evidente que a
música pode dotar o carácter com uma determinada qualidade. Ora, se isto é
exequível, não vemos razão para que não deva ser aplicado à educação dos mais
jovens». In Daniel Barenboim,
Everything is Connected, ThePower of Music, 2007, Está Tudo Ligado. O Poder
da Música, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-53-0434-1.
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