De profundis clamo ad te, domine
«(…) O breve sorriso de Inês
traiu a sua vontade mas também a sua indecisão. Decerto ainda lhe parecia coisa
demasiado grande e ousada. Impacientes, Álvaro e Fernando descobriram todo o
seu projecto. Vede, o que vos espera não é só o ser Rainha de Portugal, é mais,
muito mais, se não vos perderdes com enleios. Olhei para a banda de Castela,
onde el-rei é uma criança fraca e doente. Se
vier a morrer, quem poderá suceder-lhe? O único herdeiro legítimo é o
infante Pedro de Portugal, por ser tio de el-rei de Castela! Muitos fidalgos
castelhanos, e dos melhores, hão-de preferir um herdeiro legítimo a um
bastardo! E vós, sendo Rainha de Portugal, sereis também Rainha de Leão e
Castela. Rainha e mãe de reis. Mãe de
reis?, espantava-se Inês, o infante Pedro já tem herdeiro… Fernando respondeu-lhe
num fio de voz enquanto o mais velho, talvez para esconder o seu último e
inconfessável desígnio, desviava o rosto.
Um herdeiro, é verdade. O infantezinho Fernando. Tão criança e tão
fraco. Quem sabe se viverá. A estas palavras, apressou-se Martim a contar para
a libertar de suspeitas, pois também ele sentia o feitiço de Inês, colo de garça, a estas palavras
ela respondeu com sincera repulsa: - Vede como traçais vosso caminho sobre a
morte de reis e infantes! Álvaro retomou a capa da virtude: - Não seremos nós
mas Deus, se tal acontecer. Nós, ajudaremos a vontade divina. É mister que o
infante Pedro defenda os seus direitos em Leão e Castela. Então houve um
silêncio, durante o qual os dois a espiavam, dizia Martim, como abutres. Por fim,
ela perguntou: - Quereis vós que lhe
fale de tais cousas? Nós o faremos, disse Álvaro, nós o faremos se nos
levardes à presença do infante. Ao ouvi-lo dizer isto, Inês pareceu ter
decidido confiar à sorte a sua decisão e o seu destino. – Ver os meus irmãos com o senhor infante? Grande gosto terei!
E depois, afastando o assunto que tanto a perturbava, continuou, a sorrir: -
Dizei-me agora novas do senhor nosso pai…
Tudo isto contou Martim a Álvaro Pais, anos atrás. O chanceler repara
que João Afonso o observa, intrigado com tão longa pausa. Com um ligeiro
encolher de ombros, diz-lhe então: - Não, por minha fé, Pero Coelho e Álvaro
Gonçalves não são culpados, pois tiveram no seu entendimento as razões do reino…
Pedro apoiou as duas mãos
sobre o tampo da mesa, curvado um pouco para a frente, como se lhe faltassem as
forças. A ânsia que sente, de ver aqueles dois, de os ouvir, de os sentir
plenamente em seu poder, a ânsia que sente é tão forte que o queima por dentro
e rouba-lhe a energia física. Tanto tempo à espera, tanto tempo que esperámos,
eu e tu, Inês, para que a nossa vida começasse enfim a cumprir-se. Mas ela
começa agora, verás. É uma jura que
te faço.
Afonso Madeira tem os olhos colados às costas do rei e aguarda uma
ordem, um sinal, um simples indício da sua vontade. Hesita em mexer-se ou
falar. Conhece já estes silêncios. Sabe que muitas vezes, nos ardores da caça,
em folganças com o povo, no íntimo da alcova e até mesmo em reuniões do seu
conselho ou quando faz justiça, muitas vezes o rei se ausenta. Ausenta-se ainda
que o seu corpo ali fique, visível e tangível. É um entrar em si mesmo, um retirar-se do mundo.
Afonso Madeira teme essas ausências porque ele, quando regressa, vem
triste e com um brilho de saudade, um brilho desesperado no olhar. Por isso
quer quebrar este mau encantamento. El-rei mandou que eu tangesse, pensa então,
e quem sabe a música o desenfadará. Devagar e sem fazer ruído pega no alaúde
que jaz esquecido sobre uma almadraquexa. Porém, quando os seus dedos pousam
nas cordas, a voz de Pedro, rouca e
lenta, imobiliza-o: - Tu bem os viste, Afonso. Aquelas caras. Todos. Todos se
arreceiam da minha justiça. Querem perdão e vida para os assassinos. Sou em
crer que os teriam ajudado no mau feito, se pudessem.
Afonso Madeira domina o frio que o invade. É preciso que a sua voz seja
firme e doce, é preciso cativar o rei. – Não, meu senhor, não creiais tal
cousa. Eles só se arreceiam por vós e não pelos cativos. Eles só se arreceiam
porque…» In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997,
ISBN 972-41-1822-3.
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