Menina e Moça e o seu mau signo
«(…) Nao deve, pois, tomar-se como expressão do protocolo editorial, em
regra adstrito ao colophon.
Igualmente discordamos de que Bernardim obedecesse na elaboração da obra a
qualquer plano preestabelecido, ou o movessem intuitos de publicidade. A Menina
e Moça pelo seu valor, repetimos, é produto de mão automática, conduzida
pelo subconsciente à maneira de tantas obras célebres e caóticas, como por
exemplo o Apocalipse de S.
João. Por outro lado, àquela altura da inteligência lusitana, o exercício das
letras estava muito longe de representar um mester. Apenas para os escrivães
da puridade elas constituíam matéria de salariato. Versejava-se como se dançava
ou tangia cítara. A prosa, de resto, não gozava de grande dignificação. Em
despeito das novelas de cavalaria e do timbre que lhe imprimira Sanazaro com a
novela pastoril, prosa entremeada de écloga, a matéria plástica nobre em
literatura continuava a ser o verso.
A poesia, se, dom celestial, para uns não era mais que o violão de
Ingres, para outros servia de viático no acesso a tais e tais cargos ou
comendas. Foi mercê de semelhante altarum
que Andrade Caminha, Diogo Bernardes e tantos outros do seu ciclo, marcados com
a etiqueta de palacianos, se guindaram às chorudas conezias que usufruíram na Corte
ou as guardaram, o que exigia ainda certa arte, ou quando menos boa quota de
mérito pessoal. E estamos a ver Bernardim Ribeiro na sua cela do Hospital de
Todos os Santos, curvado sobre a banqueta, de pena de pato em punho. Seria
um homem de meia idade, ar enfermiço, incoerente no dizer, mas nada perigoso,
internado no estabelecimento porque andaria a bater com a cabeça pelas paredes
e teria cometido mais duma vesânia de que resultava prejuízo ao seu nome de fidalgo
e ao decoro que se devia a si e à classe. Era preciso pôr-lhe cobro, e parentes
e próximos, como hoje, como sempre, recorreram à hospitalização. Tratado com os
desvelos que não podiam deixar de garantir a alta patente social e o prestígio
de poeta, visitado por uns e outros, gente amiga e de prol, em dado momento a
sua crise de maníaco depressivo determinou-se no sentido da expansibilidade sem
regra nem medida, esvaziando o seu ethos
ebuliente e desconforme. E ei-lo a cobrir laudas e laudas de papel com uma
escritura galopante e compacta, como se depreende da mancha tipográfica das
primeiras edições e, por analogia, do apógrafo de Madrid. Texto cerrado sem a
menor intersecção de capítulos e parágrafos já em uso àquele tempo, o que quer
dizer, não pensando de modo algum no leitor, o comparsa pio ou pirrónico cuja
simpatia o homem de letras normal procura sempre conciliar, sem uma aberta,
salvo as alíneas, essas com certeza do punho do tipógrafo, que principiam com maiúsculas e que correspondem
ao rasgamento de capítulos da edição de Évora. O Livro das Saudades, se
é de admitir que de algum designativo beneficiasse a meio do mundo tumultuoso,
informe, incoordenado, que cachoava no peito do autor e de que escorreu a
confissão como duma cratera um rego de lava, e não foi crisma de qualquer
copista anónimo ou de qualquer interventor, teve este génesis. Sobre os cunhos
consabidos da novela de cavalaría, ajeitados às formas tenras da novela pastoril,
o poeta tomado de melancolia delirante vazava o caso pessoal, uma aventura de
amor com todo o rescaldo de patético e de voluptuoso, ampliada e desenvolvida
segundo a flora patológica que lhe excrescia da alma doente.
Não há dúvida que o entrecho da Menina e Moça envolve uma intriga de
amores sensuais de que o instinto do autor saiu malferido. E tanto o seu espírito
é dominado pela obsessão mórbida que não é capaz de manter na narrativa uma
linha vectora e se perde como um viandante que, de noite pelo escuro, vá
fazendo o seu caminho ao acaso das veredas que lhe bruxuleiam aos olhos. Uma apreciável vis poética, sem falar na
ideia fixa possessiva, o robora no seu propósito. Bernardim tem um tanto a
consciência hipertrofiada do seu destino e mormente a do seu dom literário». In
Aquilino Ribeiro, De Meca a Freixo de Espada à Cinta, Ensaios Ocasionais,
Menina e Moça e o seu mau signo, Livraria Bertrand, Lisboa, 1960.
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