Viriato. O nosso avô
«(…) Os prospectores romanos tinham descoberto ricos veios auríferos na
Bética e Lusitânia; filões inestimáveis de prata na Betúria; estanho de aluvião
por toda a parte. Os chatins voltavam de suas explorações pelo interior
tangendo manadas imensas de merinos e cavalos. E do porto de Gades as trirremes
saíam abarcotadas de carga, lãs, peles, minérios, que hora a hora vinham alijar
no cais as longas rédeas de almocreves. Um dia por outro, à luz baça do
crepúsculo vespertino, lá nas serras, tão longe que o diabo do meio-dia não
sonhava sequer com eles, os montanheses selavam seus garranos à voz de um
maioral. Uma pele de bode ou de bezerra, à laia de gualdrapa, por baixo da
cilha, era quanto bastava. Uma cabeçada com cadenilha fazia as vezes de freio.
No geral, não usavam estribos. Quando usavam, não passavam de toscas peças com
loros inverosímeis. Cada qual levava as suas provisões: borracha de serguilha a
tiracolo com as infalíveis castanhas piladas, a carne de fumeiro, a broa de
aveia ou centeio.
As mulheres, com os filhos ao colo, coração apertado, como hoje, como
sempre, vinham às portaleiras do castro vê-los ir. Não voltavarn todos. Lá iam.
Seriam cinquenta, cem, duzentos, consoante o objectivo. Perfaziam um esquadrão,
um esquadrão de sombras que desaparecia dentro de pouco enovelacto nas demais sombras
do lusco-fusco. Nem os mochos davam conta, pois que continuavam a piar. Marchavam
direitos ao Sul, e essa primeira noite, trupe-trupe,
em silêncio, que os cavalos não usavam ferraduras, chifarotes e adagas muito
caladinhas nas bainhas, faziam a sua jornada de seis léguas. Apeavam em matas
espessas que só eles conheciam. E dormiam enquanto o Sol, brincando por entre a
folhagem, se espojava em seus corpos estirados e ardia mesmo em seus rostos
barbudos sem ter o poder de os despertar. Os cavalos, mais dóceis que ovelhas,
pastavam à rédea solta. Tosavam a erva, tosavam o tojo e o sargaço, bebiam água
dos corgos, sem precisarem de fava nem de sopas de vinho. Com esta ração de
fortuna estavam aptos e rijos para nova etapa.
Quem tiver empenho em avaliar como eram estes cavalicoques d.a trama
deite os olhos para os garranos dos recoveiros ou dos raros almocreves que subsistem
e andam pelas aldeias bufarinhando o azeite, a sardinha corchada, ou batem às
portas com dois fardos de pano cru e de surrobeco. São feios de estampa,
escanelados das ancas, guedelhudos, crinas esfarripadas, e abanam um rabo
nervoso, meio pelado e ridículo. Rilharam-lhe os cascos os seixos soltos dos
caminhos velhos e as veredas que riscou na pedra o rodado de ferro dos carros de
bois. Têm um colo robusto e desgracioso, plebeu como a cabeça, quadrada e sem
raça, Os seus jarretes primam todavia por delgados e flexíveis, e trepam pelas
encostas como cabras. Os seus olhos, cheios de fúria ou de meiguice, fitam-se
no amo e compreendem-no. Não é preciso bater-lhes ou dar-lhes espora. O
almocreve que se preza não calça esporas. Às vezes vão a rezar como o dono e o
dono deixa-os. Nas jornadas, não é preciso servir-lhes ração especial. Para as
horsas as sopas de vinho. Consintam que rocem as ervas que crescem pelas rampas
onde o amo pára a conversar com os camaradas, apanhem os argalhos à porta das
aldeias, onde dá o seu recado, ou tosquie de relance as hastes de cereal que
imprudentemente se balouçam sobre a crista dos muros. Esta sobriedade constitui
a sua força. Têm a fidelidade do cão e a inocência de um cordeiro. O amo
prende-os à argola da taverna e ali estão horas e horas imperturbavelmente, batendo
a ferradura contra as moscas, sacudindo o pincel gasto da cauda, lá de raro em
raro atirando um nitrido ao céu se se esqueceram de todo deles ou passa água
aluarada no campo sensorial. Conhecem os caminhos melhor que o almocreve os atatais e os próprios utensílios do
negócio. Em suas pupilas perspicazes gravou-se de uma vez para sempre a fita
dos itinerários. Nunca mais se
esquecem. Regressar equivale a desenrolar o filme do fim para o começo.
Mas, ainda mais do que memória visual, parece que possuem o sentido da
direcção. Adivinham onde o dono pretende ir. Mas certo, certo, onde quer que
estejam, no ramerrão de burro velho, freio nos dentes ou lançados a galope,
voltam à mangedoira sem errar um palmo.
O lusitano queria ao seu cavalo como à vida. Mais que à mulher. Ambos completavam o vero centauro.
Nas retiradas desastrosas, quando era forçoso, a bem da salvação, quebrar a
aliança, pois mais corre cavalo só e melhor se furta homem só, bastava um
silvo, e lá ia como uma bala direito à estrebaria. Montado desta sorte,
avançava o esquadrão de rapinantes. Mais seis léguas na segunda noite; mais um
dia, que não tinha fim, debaixo do arvoredo copado ou no recesso de um penedal.
Outro estirão… e ia-se aproximando no espaço a presa cobiçada. Por toda uma
semana marchavam em direcção ao Sul, conduzidos por guias que sabiam ler tão
bem nas serras e planícies, soçobradas na noite, como nas estrelas acesas do Céu.
A certa altura, soltando um uivo de animal montês, anunciava-se o homem
necessário, o espia. Como ele era membranoso e coleante, morcego, gato, fuinha,
e ficavam em ânsias diante do mensageiro sinistro! Apartavam-se com ele, fora
do adjunto, os maiorais. Ele riscava, e de quando em quando os seus olhos
chispavam lume. Lume e negror esverdeado. Acontecia o chefe dar-lhe um pontapé
no ventre e tombá-lo. Caía e cuspiam-lhe em cima como num monturo. Por via de
regra, davam-lhe, depois de se concertarem, a beber das borrachas. Camaradas!» In Aquilino Ribeiro, Príncipes de
Portugal, Suas grandezas e misérias, Livros do Brasil, Lisboa, 1952.
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