domingo, 11 de maio de 2014

Onze Contos de Futebol. Camilo Cela. «… aos quais ofereceu (como é costume) linótipos e metralhadoras, e distribuiu os textos de Adam Smith entre o eleitorado, com o objectivo de amansá-lo. … era muito amigo e admirador de Disraeli (ainda mais amigo e admirador de Disraeli do que a menina Elvira, a sua comentadora)…»

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Calhamaço primeiro. A Lota

O livre-câmbio não é um princípio teórico: é uma conveniência.

«(…) O ministro do Interior acusou as sociedades secretas de quererem minar os fundamentos tradicionais da sociedade. O ministro da Defesa, escondido por detrás do seu farto bigode, trovejou contra o imperialismo e preconizou fazer de cada coração um estreito das Termópilas, e o jovem ministro da Cultura, com uma muito fria e raciocinada dialéctica, explicou aos correspondentes estrangeiros que a ausência de Pipí e Popó do solo pátrio provocaria no solo pátrio uma ferida muito difícil de estancar. O eleitorado ficou muito sossegado quando Pipí e Popó, perante os ecrãs da televisão, declararam que saudavam as suas famílias e todos os bons apoiantes em geral.
Quincio Toledo, disfarçado de freira do Sacré Coeur, estabeleceu contactos com os chefes da oposição, aos quais ofereceu (como é costume) linótipos e metralhadoras, e distribuiu os textos de Adam Smith entre o eleitorado, com o objectivo de amansá-lo. Quincio Toledo era muito amigo e admirador de Disraeli (ainda mais amigo e admirador de Disraeli do que a menina Elvira, a sua comentadora) e agia mais por conveniência do que por princípios.
Quincio Toledo cuida amorosamente dos seus escravos, enquanto não ficam com barriga ou adquirem maus costumes, e alimenta-os com ouro, tal como Belzebu faz comos seus dragões, para que não se escapem. Quincio Toledo (de solteiro e livre, Timolao López Laguna) sente-se, às vezes, preso do seu próprio poder: então, rapa o bigode e põe-se a dieta de fruta e lê os poetas (mas não há maneira). Segundo a teoria do livre-câmbio, Quincio Toledo deveria ser esbelto como um bailarino.
Quincio Toledo, como é poderoso e poupado, acredita na lei da oferta e da procura, pressuposto táctico que faz estremecer as comunidades economicamente débeis: bancos de sardinhas, rebanhos de cabras, alunos do primeiro ano de Direito, etc. Entre os axiomas de Quincio Toledo está previsto o desterro da caridade (virtude que não cabe aos triunfadores) e a difusão das lucubrações de Nietzsche (que tão eficazmente cooperam para a consequência da derrota próxima).
Quincio Toledo, num Verão em que leu Comeille (qui peut tout, doit tout craindre) esteve mais de oito dias sem fechar olho e a olhar para debaixo da cama não fosse lá estar um ladrão. Às vezes, os heróis têm que tomar sais de frutos e fumar cigarrilhas holandesas, que são de muito alimento. - E o senhor acha que Quincio Toledo vai conseguir trazer Pipí e Popó? - Sei lá, olhe, eu não sou bruxo. Vá lá saber-se o que irá acontecer! O mundo anda muito agitado e a cada dia que passa é mais difícil fazer prognósticos. O que lhe digo, isso sim, é que se Quincio Toledo não os trouxer, mais ninguém os vai trazer: disso pode ter a certeza. É dos bons, esse Quincio Toledo! Se tivesse nascido índio pele-vermelha, o mais provável era terem-no chamado Olho de Lince Astuto e Malicioso, não tenha dúvida. Que grande chefe pele-vermelha perderam as amplas savanas de Utah! O senhor não acha? - Se acho!
Do judeu Rodrigo López, mais conhecido por Catalino Toledo, falou Shakespeare. Do seu descendente, Timolao López Laguna, mais conhecido por Quincio Toledo, fala a Hoja del Lunes quase todas as segundas-feiras. O que interessa é ficar na história. Cervantes, numa manhã em que se sentiu culto, bateu à porta da história: émula do tempo, depósito das acções, testemunha do passado, exemplo e prenúncio do presente, aviso do tempo vindouro. Quincio Toledo como, além de o ser, se sente carne histórica, toma pequeno-almoço de faca e garfo». In Camilo José Cela, Once Cuentos de Futbol, 1963, Onze Contos de Futebol, Edições ASA, Porto, 1994, ISBN 972-41-1305-1.

Cortesia ASA/JDACT