Reflexos do Maiode’68
na
Sociedade Portuguesa
Para uma
revisitação de ‘one-dimensional man’ de Herbert Marcuse
Consciência e utopia
«(…)
Com efeito, segundo Marcuse, o fenómeno da própria revolta estudantil
vem trazer renovada confirmação empírica à sua tese de que o conceito de uma
classe revolucionária predeterminada
corresponde, no fundo, a uma constelação revoluta e obsoleta das lutas sociais (própria do século
XIX e dos começos do século XX), que não está mais em linha com as
alterações entretanto surgidas no funcionamento efectivo dos sistemas materiais
e do tecido social.
Pelo
contrário, de acordo com a análise que faz do capitalismo avançado e dos seus
poderosos mecanismos de integração e
de homogeneização, é apenas do seio
de uma acção determinada de rejeição
em bloco do estabelecido (e da bateria de princípios que o norteia) que os
próprios portadores da mudança, detentores de um certo estatuto de exterioridade relativamente ao sistema instalado, se perfilam e assumem
como tal, na e pela sua prática. Como ele próprio refere mais
adiante neste mesmo ensaio de 1969: A procura de agentes históricos específicos
de mudança [change]
revolucionária nos países capitalistas avançados é, de facto, sem sentido [meaningless]. As forças
revolucionárias emergem no próprio processo de mudança; a tradução do potencial
no actual [ou efectivo, actual]
é obra de prática política. Por outro lado, o ingresso (ingression) da imaginação e da criatividade,
de uma radical liberdade transgressora
e sensualizada, em processos que
declaradamente apontam à transformação configura um ambiente de alternativa que
se acompanha de rasgos de surrealidade e de utopismo, particularmente, se se tomar
como termo de referência o princípio de
realidade que comanda a subsistência do existente e o próprio modelo tradicional
que aos revolucionamentos costuma ser associado.
Daí
a perplexidade, e, do mesmo passo, o apreço, que não deixa de acompanhar uma
reflexão sobre os desenvolvimentos mais recentes: Uma concepção utópica? Foi a grande, [a] real, a força de
transcendência[transcending force],
a ideia nova [idée neuve], na primeira rebelião
poderosa contra o conjunto [the whole]
da sociedade existente, a rebelião pela total transvalorização [ou
transvalidação] de valores [transvaluation
of values], por maneiras de viver [ways of life] qualitativamente diferentes: a rebelião de Maio em França. No entanto, o
ajuizamento de Marcuse procura escavar mais fundo, e envolve toda uma
reapreciação, e um reenquadramento, do próprio conceito de utopia, que privilegie uma sua abordagem dinâmica relativamente às
meras contraposições num registo de imediatez paralisada. O viso de que estas
manifestações de revolta se revestem apresenta inegáveis traços utópicos, que
não devem em caso algum ser liminarmente desatendidos. Simplesmente, importa
questionar se esta contaminação de processos que visam uma remodelação social
do viver que não dispensa (antes requer) um vector de criatividade artística, uma dimensão estética, não corresponderá afinal àquela vitalidade a
reencontrar e a inventar, a nova
sensibilidade que expressa o ascendente [ascent]
dos instintos de vida sobre [a] agressividade e [a] culpa, sem a qual a
instauração de algo de realmente novo
não pode ter lugar.
É
preciso, portanto, perguntar se a forma
de uma imaginação criadora e gratificante, em acto na transcendência dos padrões e das metas da sociedade instalada, não
se encontra ela própria inscrita já, como exigência (uma refiguração do Sollen)
e como negação, no leque de possíveis que essa sociedade imediatamente
reprime, mas, do mesmo passo, comporta (e cuja contenção opera). O teor
constitutivo de tudo aquilo que de pronto aparece, a um olhar afeiçoado pelo, e
afeito ao, dominante, como utopia, e
o seu potencial efectivo de transformação,
dependem, em larga medida, da sua inscrição real nesse horizonte de possibilidades: A noção de forma estética como a Forma de uma sociedade livre significaria,
de facto, inverter [reversing]
o desenvolvimento do socialismo de científico a utópico, a menos que possamos
apontar para certas tendências na infraestrutura da sociedade industrial
avançada que podem dar a esta noção um conteúdo realista [a realistic contente]. Isto
é, no fundo, o que está em causa, na perspectiva de Marcuse, é o apuramento
de uma teoria crítica da sociedade industrial avançada que a considere
na sua própria estrutura, na
literalidade dos seus factos mas
também na historicidade dos seus factores,
sem perder de vista a possibilidade de uma sua transcendência, que a falaciosa
concreção do empirismo positivista, implantado nas consciências e enformante
dos comportamentos generalizados, bloqueia, deturpa e priva dos vectores
que além dela são susceptíveis de conduzir, nos termos de padrões mais
exigentes, enriquecidos e possíveis, de humanidade». In José Barata Moura, Artur Matos e Mário Lages, Centro de Estudos dos Povos e Culturas
de Expressão Portuguesa, Povos e Culturas n.º 12, Reflexos
do Maio de ’68 na Sociedade Portuguesa (CEPCEP), Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2008, ISSN 0873-5921.
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