Cortesia de nelsongarrido
Com a devida
vénia ao jornal diário Público
«A pergunta surgiu depois de uma visita a Auschwitz: seria possível que, de
todos os prisioneiros que por ali
passaram, de tantos países, nenhum fosse português? Em 2013, fomos à procura da resposta.
Durante nove meses, vasculhámos arquivos, analisámos listas de transporte e
registos de baptismo, percorremos Portugal e visitámos campos de concentração,
bases de dados e familiares de vítimas em França, Alemanha e Polónia. A
resposta está dada: houve muitos
portugueses enviados para os campos de concentração nazis. O comboio
partiu às 6h15mim. Era o dia 25 de Junho de 1942 e no seu interior apinhavam-se mil homens. Todos
judeus. Tinham passado os últimos meses no campo de internamento de Pithiviers,
a 87 quilómetros a Sul de Paris, mas agora chegara a ordem de partida. O
destino, desconhecido para os passageiros do comboio n.º 813, era o
campo de concentração de Auschwitz, na Polónia. A bordo ia Michael
Fresco, um judeu português, nascido em Lisboa, a 15 de Setembro de 1911. Enquanto Michael era deportado
para Auschwitz, Luiz Ferreira, um funileiro da região de Guimarães, emigrado em
Lyon, já tinha sido apanhado pelo regime
colaboracionista francês, por causa da sua filiação no Partido Comunista e
da acção clandestina contra os ocupantes nazis. Maria Barbosa, natural de
Ponte de Lima e também emigrada em Lyon, estava longe de saber que, dois anos
mais tarde, em 1944, estaria a
iniciar a sua viagem em direcção ao campo de concentração de Ravensbrück.
Já Casimiro
Martins, um algarvio que partira para os Pirenéus franceses, para se
juntar a um irmão e trabalhar na construção civil, não podia ainda imaginar que
dali a dois anos e meio seria uma das vítimas mortais do campo de concentração
de Neuengamme. Portugal manteve a neutralidade durante a guerra que
devastou a Europa entre 1939 e 1945, mas os portugueses não
saíram incólumes do conflito. Dezenas foram transportados para os campos de
concentração e alguns morreram lá. Um
destino ignorado pelo seu país, esquecido por membros das suas famílias,
desconhecido dos portugueses. Quase 70 anos depois do fim da guerra, as
suas histórias são, finalmente, contadas.
Michael Fresco morreu com 30 anos, apenas por ser judeu. O Michael Strogoff, alcunha pela
qual era carinhosamente tratado em família, nas tardes de reunião que os Fresco
gostavam de partilhar com os primos, em Lisboa, abandonara Portugal para se
instalar na cidade francesa de Nantes, como comerciante. Foi aí que o seu
futuro foi definitivamente interrompido. Para trás, deixava uma vida lisboeta
que parece doce e alegre, nas palavras dos descendentes da família. Alberto Fresco, 65 anos, filho de
uma prima de Michael, nunca conheceu
este parente distante, mas lembra-se de ouvir a mãe, Rebeca, falar dele. A família juntava-se toda e havia grandes
brincadeiras. A minha mãe contava que o Michael era uma pessoa muito
extrovertida, muito jovial, de tal modo que ele tinha uma alcunha, um petit nom entre os membros da
família. Era conhecido como o Michael Strogoff. Estava-se numa época em
que os livros do Júlio Verne eram muito apreciados e eu lembro-me sempre de
ouvir falar do Michael como sendo o Michael Strogoff, o correio do czar.
Uma sobrinha-neta de Michael, que
prefere não ser identificada, também se lembra bem de ouvir a avó, Raquel, falar
do irmão perdido na guerra. Eu adorava
que a minha avó contasse histórias de família e ela falava muitas vezes do Michael, com grande tristeza. Contava como tinha sido deportado e morrera
em vagões de gado, diz. A Comunidade Israelita de Lisboa ainda guarda o
Termo de Nascimento de Michael
Joseph Fresco, um dos seis filhos de Nissim e Sultana Fresco, dois judeus turcos de
Constantinopla que se haviam fixado em Lisboa, no final do século XIX. Dos seis
irmãos, Alberto, Miriam, Rebeca (que haveria de mudar o nome para Raquel depois
de casar com um português de uma família profundamente católica), Vitória,
Michael e Ventura, Michael é o
único cuja morte nos campos de concentração nazis está confirmada». In Patrícia Carvalho
(texto) e Nelson Garrido (fotografias), jornal Público,
Junho 2014.
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