quinta-feira, 5 de junho de 2014

Cartas. Prefácio de Silva Pinto. Camilo Castello Branco. «Ora o senso-commum é um bem ordenado egoismo; e todo o homem que descamba da linha recta da subjectividade e se aliena dos dois ‘Eus’, é um asno, mormente se padece de rheumatismo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Cartas
«(…)
Meu presado amigo
«Creio que não terei editor para o meu livro O marquez de Pombal. E providencial isto, para que eu não tenha de ser agraciado com algumas datas de besta e jesuita. O Chardron diz-me que antes quer romances. É que está gafado do typho pombalino. Sabe-me dizer porque sahiu o R. Ortigão do António Maria? Deve ser coisa de dissidência do centenário, a meu ver. Gostei muito das suas Meditações, na Folha Nova.
Queira dizer ao N. de L. que lhe agradeço a sua carta; e venha com elle a Seide, quando houver sol. Abraça-o o seu Amigo certo». In Camillo Castello Branco, 20-4-80.

Meu presado amigo
«Leia essa noticia que vae notada no Jornal da Noite. E veja se com dois adjectivos perfurantes e dois advérbios sonoros como bexigas de vento, no espinhaço dos asneirões das artes plásticas de Lisboa, pde evitar que se perpetue na estatua do immortal farcista Gil Vicente, solemnemente inaugurada onde quer que seja, a estatua d’um esculptor da custodia de Belém. Nós, cá dentro d’este quintal do tio Lopes, não nos véxamos uns dos outros; mas é triste cousa que nos estejamos assoalhando á risada de qualquer forasteiro medianamente critico, que se detenha a estudar os nossos disparates. Ha muito que o criticismo inglez dispensou Shakespeare de ser, a um tempo, carniceiro em Londres e auctor do Rei Lear. Presentemente, em Portugal, os lusitanos da rua da Prata, tangidos por Theophilo Braga, pegam do illuminado phantasista das Barcas, e teimam em imaginal-o um qualquer mestre abridor da rua de Cata-que-farás. Protestemos contra estas sandices centenarias que se estão grangeando uma certa immortalidade á sombra de Luiz de Camões. Recados de todos d’esta sua casa. Amigo e admirador». In Camillo Castello Branco, 10-6-80.

Meu amigo e collega.
«Surprendeu-me em Seide a dedicatória do seu livrinho (refere-se aos Realismos). Muito lh’a agradeço, e não me julgo indigno d’ella, por que taes offerendas devem ser feitas aos que nos admiram com mais consciência e independência. Um livrinho d’este tamanho faz mais no realismo portuguez do que os in-4.os famosos do Nettement contra o realismo francez. O seu artigo a respeito de Adolpho, o glotico, no Dez de Março, é um bom pedaço d’aquella vassoura com que o Hercules alimpava a celebre cavallariça. Abraça-o com muito affecto. O seu amigo». In Camillo Castello Branco, 15-6-80.

Meu amigo
«O criado que lá mandei domingo á noite (a Famalicão, próximo de S. Miguel de Seide) disse-me que v. ex.ª estava na cama, mas não me fallou em doença. Imaginei-o n’essa predilecta posição do tédio, ou na leitura de algum livro dos que só se entendem bem de costas. Se eu soubesse que era uma dor que o privava de sahir, teria ido vêl-o hontem, antes de sahir debaixo d’aquelle temporal desfeito. Cheguei a casa a nado, ás 9 da noite, e mais o garrano. A chuva quiz diluir-me as botas. Hontem estive de cama, a curtir um começo de bronchyte e a cevar as dores das pernas com o Pain-Killer, uma mixordia americana que me leva a epiderme e me deixa as dores. Devo este episodio aos infortúnios do artista que nos deixou por aqui um bom fermento de alienações do senso-cummum. Ora o senso-commum é um bem ordenado egoismo; e todo o homem que descamba da linha recta da subjectividade e se aliena dos dois Eus, é um asno, mormente se padece de rheumatismo. Louvo-lhe a reconsideração de não vir aqui com tal tempo. Eu offereço-lhes com muito affecto tudo o que posso dar-lhes aqui; mas bom sol, boas brizas e um bucolismo virgiliano, isso não posso. Aldeia com chuva é um quadro que esqueceu á topographia dos circulos dantescos. Peor do que isto só conheço os serões da Acad. Real das Sciências e os artigos do Pereira Caldas de Braga. Muito dedicado». In Camillo Castello Branco, 14-9-80.

In Cartas de Camilo Castello Branco, Prefácio de Silva Pinto, Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, Livraria Editora de Tavares Cardoso & Irmão, Editores Cardoso & Irmão, Lisboa, 1895.

Cortesia de E. Cardoso e Irmão/JDACT