segunda-feira, 9 de junho de 2014

Espelhos. Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica. 1450-1700. Maria de Lurdes C. Fernandes. «… a força dos hábitos e costumes, nem sempre coincidentes, quando não divergentes, com os modelos e com os exemplos que se pretendiam impor, era, muitas vezes, mais forte que os princípios…»

Cortesia de wikipedia

Introdução
«(…) De facto, o problema da espiritualidade do casamento e da santificação dos casados havia-se posto mais cedo do que sugeriu Philippe Ariès. Nomeadamente, ou sobretudo?, na Península Ibérica. Talvez nem sempre tão clara e expressamente como o fez S. Francisco de Sales, mas, sobretudo, em casos específicos, em momentos determinados, perante situações exemplares ou como sugestão discreta, dada a clareza do pressuposto teórico da superioridade do estado de virgindade sobre o do casamento. Contudo, o problema não era muito claro e, sobretudo, não era de tratamento fácil. As brechas e os silêncios do Texto Sagrado, as interpretações nem sempre coincidentes, a valorização de uns aspectos em detrimento de outros por parte dos padres e doutores da Igreja, para além da(s) perspectiva(s) dos canonistas, nem sempre originaram soluções pacíficas e unívocas. Uma das questões residia, precisamente, na contradição entre a inferioridade espiritual do casamento e a sua qualidade de sacramento. Mas, sendo um sacramento, como podia ser inferior? Nesta contradição, apresentada quase sempre como aparente, se apoiaram muitas das polémicas, durante a Idade Média e, ainda, na primeira metade do século XVI, acompanhadas da tentativa, por parte de vários teólogos e moralistas, de não abdicando do necessário estatuto excepcional e exemplar da virgindade e do celibato religioso, valorizar a instituição matrimonial, nomeadamente através da exaltação e do reconhecimento do prestígio dos seus bens, entre eles a procriação. Por outro lado, os necessários compromissos entre a Igreja e a sociedade, nomeadamente a nobreza, nem sempre conseguiam resolver as muitas diferenças, teóricas e práticas, resultantes de concepções de casamento e vida conjugal cujos princípios não eram os mesmos, entre eles o da consensualidade (directamente dependente da sacramentalidade), o da fidelidade conjugal, nomeadamente masculina, básicos para a perspectiva da Igreja, mas absolutamente supérfluos nas estratégias da nobreza. Por tudo isto, será necessário ter em conta os momentos de formação ou aprofundamento da doutrina e espiritualidade do casamento, assim como da sua difusão e apropriação, momentos esses particularmente importantes não só pelo valor histórico em si, mas sobretudo pelas suas motivações, pelas suas causas, relações e consequências (como é o caso, concretamente, dos respectivos debates no Concílio de Trento). Necessariamente, o problema, e a concepção, do casamento/sacramento antes e depois do Concílio de Trento não pode ser visto da mesma forma, nem os textos matrimoniais podem ser lidos do mesmo modo.
Não significam algumas decisões do Concílio de Trento, como é bem sabido, uma alteração imediata dos hábitos matrimoniais, nas suas mais variadas dimensões. Mas a assumpção oficial, por parte do topo da hierarquia da Igreja, de um dogma do casamento cristão viria a ter, em alguns casos mais rapidamente do que em outros, consequências não só na doutrina e espiritualidade do casamento, como, sobretudo e consequentemente, na sua orientação pastoral e catequizante, e na própria reformulação, a longo prazo, de alguns dos princípios básicos, como o da absoluta superioridade da virgindade e celibato religioso. A solene afirmação da sacramentalidade do matrimónio criava uma relação do homem com o divino que viria a ser, ainda que de um modo lento, forçosamente diferenciada e mais rica. As contradições atrás referidas, para além das que existiam dentro de cada uma dessas perspectivas, marcaram, em muitos momentos, não só os choques e as polémicas teóricas, mas também a própria evolução da(s) doutrina(s), da espiritualidade e da moralidade do casamento. Por seu turno, a força dos hábitos e costumes, nem sempre coincidentes, quando não divergentes, com os modelos e com os exemplos que se pretendiam impor, era, muitas vezes, mais forte que os princípios, mais determinante que a norma e mais condicionante que os valores e, consequentemente, de alteração difícil, por mais graves que fossem as penas, os castigos, enfim, a força da legislação tanto canónica como civil. Daí a multiplicação notoriamente crescente dos textos catequéticos, também sobre o casamento e a vida conjugal, das obras didáctico-morais, dos tratados pedagógicos, dos espelhos, das cartas e guias de casados... (Philippe Ariès)» In Maria de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700, Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, Porto, ISBN: 972-9350-17-5.

Cortesia de ICP/FLFP/JDACT