A prostituição e a
cidade: problemas públicos e identidade social
«(…) O denominador comum de
cada um desses tipos de prostituição é o lenocínio, isto é, a organização
comercial que garante a prostituição de outrem. O cáften, o rufião, a
cafetina, o proxeneta, o gigolô, o dono de bordel, de termas ou de casas de
massagem, figuras, enfim, que possibilitam o trabalho ou vendem proteção à
prostituta contra ataques de clientes ou mesmo contra agentes do Estado, são,
segundo as leis brasileiras, o único aspecto criminal da prostituição. Enquanto
a chamada prostituição localizada costuma ser tolerada por configurar uma
espécie de cordão sanitário e região moral que responde aos interesses do
poder público, a prática do trottoir, mais visível e difusa, é combatida
por métodos muitas vezes violentos. Na década de 1960, a polícia da capital recolhia cerca de 80 mulheres por dia, o
que, ao final do mês, somava cerca de 1400 mulheres levadas às delegacias e
encaminhadas às malocas, local
onde permaneciam detidas de 2 a 5 dias em condições inexistentes de
higiene. Nesses recintos, eram obrigadas a dormir no chão e, frequentemente, também
molestadas pelos policias que as guardavam.
A humilhação ou a obrigação de
obediência são, contudo, práticas de controle igualmente disseminadas nos
estabelecimentos da chamada prostituição localizada. Nessas cidadelas geridas
pela figura do proxeneta, a prostituta torna-se a menina da casa. Mas, para tanto, deve ser domesticada pelos
gerentes ou proprietários. No final dos anos 1950, num bordel da capital paulista, Lagenest presenciou cenas em
que a cafetina humilhava publicamente prostitutas devedoras de diárias. Já em 2002, o gerente de uma casa na Vila
Mimosa contou a esta etnógrafa ter agredido uma prostituta que
trabalhava em seu estabelecimento, com o argumento de que a mulher fazia uso da
cocaína. Com a formação das associações de prostitutas, as agressões
físicas e outras humilhações, actos que marcam o processo incriminatório do
sujeito, passaram a ser identificados como problemas não mais individuais, mas
colectivos e principalmente concernentes aos direitos civis. Para compor e
difundir esta consciência entre os membros da categoria, reuniões semanais,
mensais e anuais tornaram-se uma das actividades mais importantes dessas
associações.
No Rio de Janeiro, o Fórum de
Profissionais do Sexo, de âmbito estadual, foi criado para ser um espaço onde
as mulheres pudessem discutir questões relativas, especificamente, ao trabalho
sexual e a qualidade das interacções mantidas com outros agentes durante o
exercício do seu ofício. No Fórum, passaram a elaborar ainda mais suas narrativas
de modo a comunicar suas experiências de modo mais adequado e, com isso,
persuadir um público qualificado e cada vez mais amplo da importância de suas
reivindicações. O teor fático das conversas e narrativas trazidas para este
tipo de encontro em que expõem seus dramas pessoais e colectivos contribui para
fortalecer a identidade e fundar a solidariedade de classe.
Num
sobrado próximo ao Campo de Santana, a poucos metros da Praça Tiradentes,
acontecem esporadicamente as reuniões do Fórum de Profissionais do Sexo. Numa
destas, a directora, há mais de trinta anos na prostituição, informava aos
vinte e dois presentes que o grupo e as reuniões tinham sido criados para acabar com a discriminação.
Discursava vigorosamente sobre a importância da autoestima para o desempenho
satisfatório de todos os papéis que a sua vida lhe exigia e citava, como
exemplo, o de mãe, avó, dona-de-casa e esposa,
mostrando que o de prostituta
não a impedia de exercer aqueles representativos da vida doméstica, da mulher direita, da mulher da casa e feita para o casamento». In
Soraya Silveira Simões, Identidade e
política. A prostituição e o reconhecimento de um ‘métier’ no Brasil, Revista de Antropologia Social dos
Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.1, 2010.
Com amizade.
Com amizade.
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